2015/03/21

TEOLOGIA DESCOMPLICADA: O QUE QUER DIZER A EXPRESSÃO "HOMEM SEGUNDO O CORAÇÃO DE DEUS" APLICADA A DAVI?

TEOLOGIA DESCOMPLICADA: O QUE QUER DIZER A EXPRESSÃO "HOMEM SEGUNDO O CORAÇÃO DE DEUS" APLICADA A DAVI?

Esta pergunta é muito interessante, visto que a expressão entre aspas está amplamente incorporada ao dialeto evangeliquês. Nós a encontramos em livros, em músicas e de modo generalizado na boca da massa evangélica. Sempre ouvimos uma oração do tipo: “Ó Senhor, ajude-me a ser um homem segundo o teu coração!”

O mais comum, porém, é encontrarmos essa expressão como uma espécie de justificativa para pecados cometidos por nós. Seria algo mais ou menos assim:“Mas, se até Davi, que era o homem segundo o coração de Deus, pecou, imagina eu!” O ponto a ser destacado, é que a expressão “homem segundo o coração de Deus” é usada com frequência como estando relacionada com alguma piedade especial que Davi teria recebido da parte de Deus. Ser um homem segundo o coração de Deus, então, seria um homem dotado de um diferencial em relação aos outros homens do seu tempo. Seria beirar à perfeição moral e espiritual.

Não obstante, quando paramos para ler as Escrituras com a devida atenção percebemos que não é esse o significado da expressão. Na realidade, Davi foi um dos personagens bíblicos cujas faltas receberam ampla cobertura (não estou afirmando que a Bíblia justifica as faltas de Davi!). A Bíblia não mascara o caráter dos seus personagens. Pelo contrário, ela é muito honesta e franca quanto a isso. Por exemplo, Davi foi culpado de pecados horrorosos como adultério, assassinato e poligamia (Davi teve oito esposas). Além disso, ele negligenciou os seus deveres e responsabilidades como pai. Como, então, a expressão “homem segundo o coração de Deus” pode significar conformidade moral e espiritual ao caráter santo e reto de Deus? Simplesmente, não pode!

O grande problema é a má interpretação desta expressão. Ela é absurdamente mal lida e mal entendida. Nós a encontramos em Atos dos Apóstolos: “Então, eles pediram um rei, e Deus lhes deparou Saul, filho de Quis, da tribo de Benjamim, e isto pelo espaço de quarenta anos. E, tendo tirado a este, levantou-lhes o rei Davi, do qual também, dando testemunho, disse: Achei Davi, filho de Jessé, homem segundo o meu coração, que fará toda a minha vontade”(13.21,22). Para compreendermos o significado da expressão precisamos retornar às narrativas do Antigo testamento a respeito da unção tanto de Saul quanto de Davi como reis de Israel.


Em 1 Samuel 8 encontramos o relato de como se procedeu à escolha de Saul. Samuel já era de idade avançada e os seus filhos eram ímpios notórios (vv. 1-3). Então, os anciãos de Israel pediram que Samuel constituísse um rei sobre a nação, que os governasse como todas as nações (v. 5). Depois de ser enviado pelo Senhor com a resposta, Samuel expõe diante do povo todos os direitos do futuro rei (vv. 10-17). Em seguida, Samuel os advertiu dizendo o seguinte: “Então, naquele dia, clamareis por causa do vosso rei que houverdes escolhido; mas o SENHOR não vos ouvirá naquele dia” (v. 18). Devemos notar que o texto bíblico é claro ao afirmar que o povo seria o responsável pela escolha do rei.


No capítulo 9, é introduzida a narrativa a respeito de Saul, “moço e tão belo, que entre os filhos de Israel não havia outro mais belo do que ele; desde os ombros para cima, sobressaía a todo o povo” (v. 2). É interessante a ênfase que o autor coloca sobre a descrição física de Saul. Não há qualquer menção de qualidades interiores ou morais. Isso dá a entender que a suntuosidade estética de Saul foi preponderante para a sua escolha como rei. Outro não poderia ser o rei senão aquele jovem de beleza tão destacada. Tal descrição contrasta fortemente com o que é dito acerca de um dos filhos de Jessé, em 1 Samuel 16.18: “Então, respondeu um dos moços e disse: Conheço um filho de Jessé, o belemita, que sabe tocar e é forte e valente, homem de guerra, sisudo em palavras e de boa aparência; e o SENHOR é com ele”. Na descrição de Davi a ênfase está colocada nas qualidades interiores, como por exemplo, força, valentia, coragem, prudência no falar. O aspecto espiritual também é ressaltado (e o SENHOR é com ele). Sua boa aparência é mencionada, porém, sem a suntuosidade da descrição de Saul.


Precisamos observar também as passagens do Antigo Testamento relacionadas com a citação de Atos 13.22. Em 1 Samuel 13.14, após reprovar Saul por ter oferecido sacrifícios – o que não lhe competia –, Samuel afirmou o seguinte: “Já agora não subsistirá o teu reino. O SENHOR buscou para si um homem que lhe agrada e já lhe ordenou que seja príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o SENHOR te ordenou”. Samuel diz a Saul que o seu sucessor no trono de Israel era do agrado do Senhor, indicando assim, o prazer de Deus na pessoa do futuro ungido.

Outra pista para o entendimento da expressão em questão está no capítulo 16.6,7: “Sucedeu que, entrando eles, viu a Eliabe e disse consigo: certamente, está perante o SENHOR o seu ungido. Porém o SENHOR disse a Samuel: Não atentes para a sua aparência, nem para a sua altura, porque o rejeitei; porque o SENHOR não vê como vê o homem. O homem vê o exterior, porém o SENHOR, o coração”. Este versículo é, deveras, elucidativo para a nossa questão. Quando lembramos da descrição de Saul (9.2) e vemos as palavras de Deus a Samuel, podemos concluir que o prazer do povo em relação à escolha do rei recaía sobre o seu exterior, a sua aparência. O critério do Senhor é completamente diferente do critério humano. Enquanto o homem se fia na opulência estética e física, Deus se agrada do interior.


Após este longo (e cansativo) arrazoado, creio que fica claro o sentido da expressão. Quando lemos em Atos dos Apóstolos que Davi era o “homem segundo o coração de Deus”, devemos compreender que tal expressão faz referência ao gosto de Deus, ao seu prazer, ao seu agrado. Enquanto Davi era o homem segundo o coração de Deus, Saul era o homem segundo o coração dos homens. Por fim, é preciso que se entenda que a discussão não é acerca da soberania de Deus na escolha do rei. Não está em pauta o decreto de Deus. O foco gira em torno daquilo que agrada a Deus em oposição àquilo que agrada o homem.


Devemos, então, continuar cantando e orando pedindo que Deus nos faça homens e mulheres segundo o seu coração? Particularmente, eu agradeço constantemente a Deus, porque em Cristo e por causa de Cristo, antes da fundação do mundo, fui escolhido segundo o coração de Deus. E isto é verdade em relação a todo filho e filha de Deus.

Nenhum comentário:

Postar um comentário