Toda pessoa carrega em sua cabeça um modelo mental do mundo – uma representação subjetiva da realidade externa. Alvin Tofler
Em busca de uma definição
O fato de o termo cosmovisão ser usado em muitas áreas, desde as ciências naturais à filosofia e à teologia[i], torna a sua definição um trabalho espinhoso. Entretanto, para os propósitos deste livro, vamos nos ater às definições utilizadas dentro da perspectiva teológica cristã.
Cosmovisão[ii] é uma tradução da palavra alemã weltanschauung, que significa “modo de olhar o mundo” (welt – mundo, schauen – olhar), ponto de vista ou concepção de mundo. De acordo com Albert Wolters, este termo tem a vantagem de ser claramente distinto de “filosofia” (ao menos no uso alemão) e de ser menos enfadonho do que a frase “visão do mundo e da vida”[iii]. Em poucas palavras, é um conjunto de suposições e crenças que utilizamos para interpretar e formar opiniões acerca da nossa humanidade, propósito de vida, deveres no mundo, responsabilidades para com a família, interpretação da verdade e questões sociais. É como um mapa mental que nos diz como navegar de modo eficaz no mundo[iv].
Norman Geisler[v] nos dá outra representação, em que a cosmovisão é semelhante a uma lente intelectual através da qual enxerga-se o mundo. Se alguém olha através de uma lente vermelha, o mundo lhe parece vermelho. Se outro indivíduo olha através de uma lente azul, o mundo lhe parece azul.
No livro Dando Nome ao Elefante[vi] James Sire faz uma pesquisa profunda sobre o significado do termo. Inicialmente, ele apresente os conceitos usados por vários pensadores cristãos, do passado e do presente:
James Orr – “É a visão mais ampla que a mente pode ter das coisas num esforço de compreendê-las como um todo, do ponto de vista de alguma filosofia ou teologia em particular”.
Abraham Kuyper – “Sistema de vida abrangente”. Toda cosmovisão, sustenta Kuyper, deve tratar de “três relações fundamentais de toda a existência humana: a saber, nossa relação com Deus, com o homem e com o mundo”.
James Olthuis – “É uma estrutura ou conjunto de crenças fundamentais pelas quais vemos o mundo e nosso chamado e futuro nele. Essa visão não precisa ser totalmente articulada: ela pode estar tão internalizada que passa muito tempo sem ser questionada; pode não estar explicitamente desenvolvida na forma de uma concepção sistemática da vida; pode não estar teoricamente aprofundada na forma de uma filosofia; tampouco pode estar codificada na forma de uma credo; pode ter sido bastante refinada por um desenvolvimento histórico e cultural. Não obstante, a visão é um canal para as crenças últimas que conferem significado e direção à vida. É a estrutura integrativa pela qual a ordem e a desordem são julgadas; é o padrão pelo qual se administra e se busca a realidade; é o conjunto de dobradiças pelas quais todos os nossos pensamentos e afazeres diários giram”.
Albert M. Wolters – “Cosmovisão é a estrutura abrangente das crenças básicas de uma pessoa sobre as coisas”.
Ronald Nash – “Conjunto de crenças mais importantes da vida… [é] um esquema conceitual pelo qual, consciente ou inconscientemente, aplicamos ou adequamos todas as coisas em que cremos, e interpretamos e julgamos a realidade”.
John H. Kok – “Cosmovisão pode muito bem ser definida como a estrutura abrangente das crenças básicas de uma pessoa sobre as coisas, mas nosso discurso (crenças reconhecidas ou reinvindicações cognitivas) é uma coisa e nossa conduta (crenças na prática) é outra, e muito mais importante. A cosmovisão vivida define as convicções básicas de uma pessoa; define aquilo pelo qual a pessoa está pronta a viver e morrer”.
David Naugle – “Cosmovisão na perspectiva cristã implica que os seres humanos são imagem e semelhança de Deus e estão ancorados e integrados no coração como a esfera subjetiva da consciência que é decisiva para moldar uma visão de vida e cumprir aquela função tipicamente atribuída à noção de weltanschauung”.
Depois de analisar as definições desses autores, James Sire apresenta aquilo que ele chama de sua definição refinada:
“(…) cosmovisão é um comprometimento, uma orientação fundamental do coração, que pode ser expressa como uma história ou um conjunto de pressuposições (hipóteses que podem ser total ou parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas), que detemos (consciente ou subconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a constituição básica da realidade e que fornece o alicerce sobre o qual vivemos, nos movemos e existimos.”[vii]
Em seu outro livro, O universo ao lado[viii], Sire explica cada parte do seu conceito:
Cosmovisão como comprometimento: uma cosmovisão envolve a mente; porém, é, acima de tudo, um compromisso, uma questão de alma. É uma orientação espiritual mais que uma questão de mente apenas. De acordo com Sire, a partir da ideia de Naugle, cosmovisões são, na verdade, uma questão de coração. O conceito bíblico de coração inclui: sabedoria (Pv. 2.10), de emoção (Ex 4.14; Jo 14.1), desejo e vontade (ICrs 29.18), espiritualidade (At. 8.21) e intelecto (Rm 1.21).
Expressa como uma história ou um conjunto de pressuposições: Nesse ponto, Sire destaca que uma cosmovisão não é necessariamente um conjunto de pressuposições, mas pode ser expressa dessa maneira. Quando refletimos a respeito de onde viemos ou para onde vamos, a nossa cosmovisão se expressa por meio de uma história. Pode ser uma história contada a partir do ponto de vista naturalista, que se inicia no Big Bang, ou a partir da visão cristã, na qual o nascimento, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo constituem o fundamento central.
Pressuposições que sejam verdadeiras (total ou parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas), conscientes (ou subconscientemente) e consistentes (ou inconsistentemente): De acordo com Sire, “as pressuposições que expressam o comprometimento da pessoa pode ser plena ou parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas”. Significa dizer que a pessoa pode desenvolver pressuposições que não sejam verdadeiras, mesmo que não se conta disso. Em um mundo que não aceita a existência de uma verdade absoluta, o papel da apologética cristã é exatamente apontar as incoerências da cosmovisões não cristãs. Além disso, as pressuposições podem ser conscientes ou inconscientes, consistentes ou inconsistentes.
O alicerce sobre o qual vivemos, nos movemos e existimos. Em geral, assegura Sire, “nossa cosmovisão repousa tão profundamente entremeada em nosso subconsciente que, a não ser que tenhamos refletido longa e arduamente, não temos consciência do que ela é”.
Conforme explica Nancy Pearcey, “cosmovisão não é um conceito acadêmico e abstrato. O termo descreve nossa procura por respostas às questões intensamente pessoais com as quais temos de lutar – o clamor do coração humano na busca de propósito, significado e uma verdade grande o bastante pela qual viver. Ninguém pode viver sem um senso de propósito e direção, um senso de que a vida tem significação como parte da história cósmica”[ix].
Por essa razão, Schaeffer diz que todas as pessoas têm seus pressupostos, e elas vão viver do modo mais coerente possível com estes pressupostos, mais até do que elas mesmas possam se dar conta[x].
As consequências práticas de uma cosmovisão
É exatamente a cosmovisão básica de uma pessoa que vai norteá-la ante as decisões mais importantes da sua vida. Quando o casamento vai mal, qual a decisão a ser tomada? A infidelidade é normal? Como deve ser encarada a questão do aborto e do homossexualismo? Qual a forma de proceder no trabalho? Como educar os filhos? Como encarar a violência? Quais os princípios que devem nortear a economia, a educação e o Direito?
Frente a tais situações práticas, as pessoas tomam suas decisões baseado naquilo que compreendem como sendo verdadeiro ou falso; certo ou errado. A cosmovisão que possuímos norteia nossas decisões e atitudes, e funciona como um guia, dando-nos senso de direção acerca da forma como devemos agir.
Como escreve George Barna, “sempre que tomamos uma decisão, inconscientemente a passamos por um filtro mental e emocional que nos permite decidir de acordo com o que entendemos ser verdadeiro, relevante e conveniente. Esse filtro é o resultado de como organizamos as informações de modo a dar sentido ao mundo em que vivemos”[xi].
Nesse mesmo sentido, Guilherme de Carvalho escreve que a cosmovisão de um indivíduo ou comunidade pode ser comparada à raiz de uma árvore:
“Crenças (pressupostos) vão gerar valores (tronco). Estes valores, por sua vez, determinam o comportamento (galhos) dos indivíduos, que vão originar as consequências (frutos). A premissa “ideias trazem consequências” é fundamental neste sentido. Os corações e mentes dos indivíduos são guiados consciente ou inconscientemente por um sistema de ideias, que vai se refletir nos seus valores, comportamentos e nas consequências oriundas destes padrões. A cosmovisão e os valores que temos é que vão determinar a nossa história, e não o contrário. Muitas vezes, tem-se tentado solucionar os problemas apenas ao nível das consequências, ou seja, atuando nos “frutos” da árvore. Arrancamos o fruto, mas ele volta a nascer e crescer, porque a raiz não foi transformada”[xii].
CONSEQUÊNCIAS
(frutos)
COMPORTAMENTO
(galhos)
VALORES
(tronco)
CRENÇAS
(raiz)
Princípio Religioso
(Terreno)
Logo, se nossas cosmovisões influenciam diretamente nossas vidas e reações diante da sociedade, é particularmente importante para nós conhecer aquilo em que cremos e por quê. Norman Geisler propõe que pensemos nas consequências históricas que advêm direta e logicamente das crenças e convicções. Ele lembra o exemplo de Adolf Hitler, que apelou para o povo de seu país a fim de obter apoio para avançar na realização prática de sua visão naturalista:
“O mais forte deve dominar, não se igualar ao mais fraco, o que significaria o sacrifício de sua própria natureza humana. Somente o indivíduo que é fraco de nascimento pode entender este princípio como cruel. E, se faz isso, é meramente porque é de natureza mais fraca e de mente mais obtusa, pois se essa lei não direcionasse o processo de evolução, o desenvolvimento superior da vida orgânica não seria concebível de forma alguma […] Se a natureza não deseja que os indivíduos mais fracos se igualem aos mais fortes, deseja ainda menos que uma raça superior se misture com uma inferior, porque nesse caso todos os seus esforços, ao longo de centenas de milhares de anos, para estabelecer um estágio evolutivo mais alto do ser, podem-se traduzir em inutilidade”[Mein kampf, p. 161-2][xiii].
As nefastas ideias de Hitler sobre a superioridade da raça ariana e as suas teses racistas e anti-semitas foram responsáveis pelo genocídio de milhares de pessoas, desencadeando, inclusive, a 2ª Guerra Mundial. Percebam que Hitler acabou aplicando os conceitos teóricos de sua cosmovisão naturalista de seleção natural à raça humana. Uma das provas disso foi Auschwitz, campo de concentração e símbolo do holocausto provocado pelo nazismo.
Normais Geisler escreve ainda que “as convicções fortes de homens como Hitler e Mengele mostram que a maneira de ver o mundo (cosmovisão) pode mudar a face deste mundo”, por isso entender o que as diferentes cosmovisões ensinam e as consequências lógicas de cada uma é crucial[xiv].
Elementos de uma cosmovisão
Não é qualquer forma de pensamento que pode ser considerado como uma cosmovisão. Uma visão de mundo deve necessariamente responder às questões básicas do ser humano, especialmente aquelas que dizem respeito aos pontos principais da própria vida, tais como:
De onde viemos?
O que é o ser humano?
O que acontece quando morremos?
Como é possível conhecer alguma coisa?
Como sabemos o que é certo ou errado?
Qual o significado da vida?
Por essa razão, o filósofo cristão Ronald Nash diz que as cosmovisões contêm pelo menos cinco grupos de crenças ou elementos fundamentais: Deus, Metafísica, Epistemologia, Ética e Natureza humana.
Deus – O elemento crucial de qualquer cosmovisão, escreve Nash, é o que ela diz sobre Deus. As diferentes concepções sobre a figura do divino marcam a distinção entre as principais visões de mundo, na medida em que respondem a questões do tipo: Deus existe? Qual sua natureza? Há mais de um Deus? Ele é um ser pessoal? Ou apenas um poder impessoal?
Metafísica – Nesse ponto, Ronald Nash destaca que uma cosmovisão também inclui respostas a questões sobre a Realidade última, como: Qual a relação entre Deus e o universo? Um Deus pessoal e onipotente criou o universo? A existência do universo é eterno? Há um propósito no universo?
Epistemologia – Este elemento diz respeito ao próprio conhecimento. É possível saber, entender e conhecer? Existe verdade? A verdade é absoluta ou relativa? O conhecimento sobre Deus é possível?
Ética – De acordo com Nash, a maioria das pessoas é mais consciente dos componentes éticos de sua cosmovisão do que de suas crenças sobre metafísica e epistemologia, pois “nós fazemos julgamentos morais sobre a conduta dos indivíduos (nós mesmos e outros) e sobre nações”. Portanto, o elemento busca responder indagações sobre a moralidade: Há leis morais que governam a conduta humana? Quais são elas? A moralidade é totalmente subjetiva, ou há uma dimensão objetiva para as leis morais que significa que sua verdade é independente de nossas preferências e desejos? A moralidade é relativa aos indivíduos, culturas ou períodos históricos?
Antropologia – Toda cosmovisão inclui também crenças sobre a própria natureza do ser humano. O ser humano é apenas corpo ou materialidade, ou tem uma dimensão espiritual? Qual sua origem? Existe vida após a morte? A vida tem um propósito?
Elemento
Objeto
Perguntas fundamentais
Teológico
Existência de Deus e sua natureza
Deus existe? Qual sua natureza? Há mais de um Deus? Ele é um ser pessoal? Ou apenas um poder impessoal?
Metafísico
Realidade última
Qual a relação entre Deus e o universo? Um Deus pessoal e onipotente criou o universo? A existência do universo é eterno? Há um propósito no universo?
Epistemológico
Conhecimento
É possível saber, entender e conhecer? Existe verdade? A verdade é absoluta ou relativa? O conhecimento sobre Deus é possível?
Ético
Moralidade
Há leis morais que governam a conduta humana? Quais são elas? A moralidade é totalmente subjetiva, ou há uma dimensão objetiva para as leis morais que significa que sua verdade é independente de nossas preferências e desejos? A moralidade é relativa aos indivíduos, culturas ou períodos históricos?
Antropológico
Natureza humana
O ser humano é apenas corpo ou materialidade, ou tem uma dimensão espiritual? Qual sua origem? Existe vida após a morte? A vida tem um propósito?
As principais cosmovisões
Os nomes e a quantidade de cosmovisões podem variar de um autor para outro, a depender da tipologia adotada. De acordo com Norman Geisler, existem sete visões de mundo diferentes: ateísmo, teísmo, panteísmo, deísmo, politeísmo etc. Ele sintetiza os ensinamentos das três principais cosmovisões da seguinte forma[xv]:
ATEÍSMO
DEUS – Não existe. Existe somente o universo.
UNIVERSO – É eterno; ou casualmente veio a ser.
HUMANIDADE (origem) – Evoluímos, somos compostos de moléculas e não somos imortais.
HUMANIDADE (destino) – Não temos nenhum destino eterno e seremos aniquilados.
MAL (origem) – É real, causado pela ignorância humana.
MAL (destino) – pode ser derrotado pelo homem por meio da educação.
ÉTICA (base) – É criada pela humanidade e fundamentada na própria humanidade.
ÉTICA (natureza) – É relativa, determinada pela situação.
PANTEÍSMO
DEUS – É um, infinito, normalmente impessoal; ele é o universo.
UNIVERSO – É uma ilusão, uma manifestação de Deus, o único que é real.
HUMANIDADE (origem) – O verdadeiro eu (atmã) do homem é Deus (Brahman).
HUMANIDADE (destino) – Nosso destino é determinado pelos ciclos da vida, o carma.
MAL (origem) – É uma ilusão causada pelos erros da mente.
MAL (destino) – Será reabsorvido por Deus.
ÉTICA (base) – Os princípios éticos se baseiam em manifestações inferiores de Deus.
ÉTICA (natureza) – Os princípios éticos são relativos, transcendem a ilusão do bem e do mal.
TEÍSMO
DEUS – É um só, pessoal, moral, infinito em todos os seus atributos.
UNIVERSO – É finito, criado pelo Deus infinito.
HUMANIDADE (origem) – Somos imortais, criados e sustentados por Deus.
HUMANIDADE (destino) – Por escolha seremos eternamente separados de Deus ou viveremos eternamente com ele.
MAL (origem) – É a privação ou imperfeição causada pela escolha.
MAL (destino) – Será finalmente derrotado por Deus.
ÉTICA (base) – Os princípios éticos se baseiam na natureza de Deus.
ÉTICA (natureza) – Os princípios éticos são absolutos, objetivos e prescritivos.
É exatamente nesta cosmovisão que o cristianismo está inserido: o teísmo.
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