Os filhos pródigos da igreja
A presente reflexão focaliza as causas que levam as ovelhas a se perderem em função das decepções. Quais foram as dificuldades por elas enfrentadas? Quais são os motivos de suas frustrações e desilusões? Por que as pessoas se decepcionam com suas igrejas? Quais os principais motivos que levam as pessoas a abandoná-las? Essas são perguntas honestas que não deveríamos ter medo de procurar as respostas. Hoje existe um grande número de pessoas espalhadas nas cidades brasileiras que se encontram decepcionadas, desiludidas, desapontadas e desencantadas com a igreja.
Introdução
A presente reflexão diz respeito à porta dos fundos da igreja. Muitas pessoas entram na igreja e muitas pessoas também acabam saindo. Muito mais agradável é refletir sobre a porta de entrada do que a porta dos fundos. A maior parte dos pesquisadores do crescimento da igreja analisa as avenidas que dão acesso à igreja. Isso certamente é necessário para se entender o que faz com que as pessoas busquem uma determinada igreja. Em contrapartida, se não houver um interesse e uma preocupação por parte dos pastores e pesquisadores na área do crescimento em relação à porta dos fundos, essa busca por crescimento pode ser interesseiro, apenas numérico, tendo o membro como um número estatístico. Mais cedo ou mais tarde essa pessoa perceberá que não passa de um número a mais ou menos em sua igreja, e assim vai aos poucos se aproximando da porta dos fundos, para então passar por ela e acabar saindo.
Um pastorado que não busca refletir e entender os motivos que as pessoas possuem para sair da igreja é um pastorado sem a perspectiva do cuidado. Cuidar é se importar. Se o pastor se importa com as ovelhas, ele certamente proporcionará ambientes para que esse cuidado pastoral possa existir em sua igreja. Muitos pastores não querem refletir sobre a porta dos fundos porque necessariamente terão que enfrentar críticas, problemas e opiniões contrárias. Essas pessoas são tidas como anarquistas, desobedientes, insubmissas, não-espirituais e, por vezes, perturbadoras do ambiente. Sempre temos a tendência de nos afastar das pessoas que são críticas, como de afastá-las do nosso convívio. Para se estudar a porta dos fundos é necessário então honestidade e transparência. Muitas das críticas e dos motivos que essas pessoas levantam acabam questionando a liderança pastoral, a estrutura da igreja, sua liderança, as situações conflitivas da igreja e também o testemunho dos membros.
Esse tipo de reflexão traz um certo desconforto e possíveis irritações. Porém, a motivação aqui exposta não é fruto de amargura, pessimismo, insucesso, ou coisas parecidas. O que motiva é o cuidado pastoral amoroso para com aquelas pessoas que Deus colocou em nossa responsabilidade. Devemos ser motivados pelo caráter do Pai que “não quer que nenhum destes pequeninos se perca” (Mt 18:13). Um pastorado que não se preocupa com a ovelha perdida é uma prova evidente que sua obsessão maior está nos números. Não podemos permitir que o número das noventa e nove nos leve a ignorar aquela uma que se perdeu. Alguns pensam assim: “ainda me restam noventa e nove”! O que deve nos motivar a refletir sobre este assunto é o exemplo de Jesus, que pergunta:
Qual de vocês que, possuindo cem ovelhas, e perdendo uma, não deixa as noventa e nove no campo e vai atrás da ovelha perdida, até encontrá-la? E quando a encontra, coloca-a alegremente nos ombros e vai para casa. Ao chegar, reúne seus amigos e vizinhos e diz: Alegrem-se comigo, pois encontrei minha ovelha perdida (Lc 15:4-6).
Possivelmente esse é um dos raros textos em que Jesus nos ensina a contar as ovelhas. Contar não no sentido de apresentar um relatório no final do ano para as assembléias, comitês e concílios, demonstrando o sucesso pastoral e ministerial. Contar como prova do nosso cuidado e preocupação para com as ovelhas que saíram do convívio das demais.
A presente reflexão focaliza as causas que levam as ovelhas a se perderem em função das decepções. Quais foram as dificuldades por elas enfrentadas? Quais são os motivos de suas frustrações e desilusões? Por que as pessoas se decepcionam com suas igrejas? Quais os principais motivos que levam as pessoas a abandoná-las? Essas são perguntas honestas que não deveríamos ter medo de procurar as respostas. Hoje existe um grande número de pessoas espalhadas nas cidades brasileiras que se encontram decepcionadas, desiludidas, desapontadas e desencantadas com a igreja.
A seguir são apresentadas algumas causas que levam as pessoas a ficarem decepcionadas com a igreja. Essas causas foram extraídas de duas pesquisas.
. Trata-se de uma pesquisa nos Estados Unidos para descobrir porquê as pessoas estão abandonando as igrejas. Esse estudo revela certas tendências que poderão nos auxiliar em relação às causas, como também em como recuperar as pessoas, na tentativa de reintegrá-las. Para efeito de citação dessa pesquisa, passamos a denominá-la de LR (LifeWay Resarch).
A segunda trata-se de uma pesquisa que foi fruto de um projeto de pesquisa realizado em uma das disciplinas de Pós-Graduação da Faculdade Teológica Sul Americana. As pessoas foram escolhidas criteriosamente, levando em conta que deveriam estar fora da igreja no mínimo de dois (2) e no máximo de dez (10) anos. Exigiu-se também que as pessoas entrevistadas tivessem exercido algum tipo de liderança em sua igreja. A entrevista consistia de várias perguntas e as mesmas foram gravadas e transcritas, nos dando permissão de citá-las, desde que omitida as fontes. Para efeito de citação dessa pesquisa, passamos a denominá-la de PL (Pesquisa Londrina).
Dessa forma, as seis (6) causas descritas aqui, que levaram as pessoas a ficarem decepcionadas com suas igrejas, são reais e não conjecturas; são dados concretos e verdadeiros de pessoas que expressaram seus sentimentos. Não se trata de abstração. É possível que o grito dessas pessoas possa estar fazendo eco em nossas igrejas. Só quem tem sensibilidade e amor que cuida estará apto para ouvir. Ouvir não apenas com os ouvidos, mas com o coração quebrantado. Quem tem ouvimos para ouvir, ouça o que essas pessoas estão dizendo da igreja. Quem não quiser ouvir, o que segue não faz o mínimo sentido, ao contrário, causará desconforto.
1. Mudanças de situação de vida
De acordo com a pesquisa (LR), 59% das pessoas que deixaram a igreja o fizeram por causa das mudanças de situação de vida. Essa causa pode ou não estar relacionada à igreja. Elas surgem na vida das pessoas, fazendo com que deixem a igreja. São pessoas que mudam de cidade, são transferidas em seus trabalhos, e coisas do tipo. Porém, existem outros motivos relacionados às mudanças de situação de vida que podem sim fazer com que as pessoas deixem a igreja por descuido. Alguns exemplos: divórcio, separação, nascimento de um filho(a), morte na família, tipo de disciplina eclesiástica aplicada em decorrência de alguma situação experimentada, uma frustração de relacionamento com algum(s) membro(s) da igreja, a má conduta de certas pessoas ou líderes, e coisas do tipo. Se essas coisas acontecem e as pessoas acabam deixando a igreja revela que houve sim um descuido para com a porta do fundo. Esse descuido pode acontecer de forma intencional (sabe a causa, mas ignora-se), como também de forma não-intencional (a pessoa sai sem que se perceba). Seja qual for o motivo, revela uma igreja que ruma para a des-personificação.
A pesquisa (LR) revela que 19% das pessoas simplesmente estão muito ocupadas para participar da igreja e que 17% disseram que as responsabilidades da casa e família influenciam no processo de abandono da igreja. Em ambos os casos, parece que a igreja não tem força suficiente para que essas pessoas fiquem encorajadas, mesmo diante das situações enfrentadas, a continuarem firmes na mesma. A vida, com suas situações inevitáveis, se traduz mais como uma ameaça do que uma oportunidade. Se a ameaça prevalece, então o abandono surge como resposta. A igreja tem respondido às pressões e ameaças do mundo atual ou tem sido mais um fator de stress ou simplesmente nula?
Uma outra mudança de situação de vida é quando a pessoa muda de bairro. Cerca de 28% dessas pessoas reportaram que o fato de terem mudado de localidade causou o abandono de sua igreja. Isso demonstra a grande necessidade que a igreja e liderança precisam ter em relação às mudanças de vida das pessoas. Quando uma pessoa ou família move-se para uma nova localidade ou passa a freqüentar outra igreja, resta saber se a igreja notou isso.
2. Desencantamento dos membros e pastores
Esse motivo é indicado nessa pesquisa (LR) por cerca de 37% dos entrevistados. O comportamento dos próprios membros é responsável por 17%, registrando o lado hipócrita dos mesmos. Outros 12% revelam seu desencantamento porque encontram dificuldades de envolvimento.
Sem dúvida que o fator primordial aqui se refere ao pastor. Muitos o percebem como aquele que julga, não-sincero e fraco nas habilidades, como exemplo, na pregação.
A liderança pastoral foi a causa número um (1) que praticamente perpassou a todos entrevistados (PL). Uma das pessoas disse que “o problema principal é não viver aquilo que se é pregado... arrumar um jeitinho, uma desculpa para contornar uma certa situação e acabar deixando de fazer aquilo que é para ser feito”. Esse(a) entrevistado(a) revela sua desilusão em relação a integridade pastoral – ou seja – não viver o que prega e não fazer o que é certo. Não há dúvida que os pastores estão constantemente nos olhares da comunidade.
Outra pessoa revela uma mágoa profunda em relação ao pastor. Ele relata uma circunstância e seu comentário final é esse: “eu tenho mágoa do pastor e não vou suportar aquele cara, eu não aceito a atitude que ele fez”. Essa pessoa não só demonstra sua mágoa como também sua desilusão pastoral, ao tratá-lo de cara. Esse deixou de ser pastor para ser um cara qualquer. Isso fica claro no final da entrevista, ao dizer que ele é “um grande cara, mas como pastor para mim não serve” (PL). De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a palavra cara, quando usada como substantivo masculino
tem a idéia de indivíduo qualquer, sujeito ou pessoa. Passou de pastor para cara.
“Hoje em dia os pastores estão tão ocupados com outras coisas que acabam esquecendo-se dos próprios membros dentro da igreja. Às vezes está preocupado com estudos... com uma leitura... acaba esquecendo que lá dentro da igreja dele há pessoas que devem estar se afastando porque o pastor não está visitando, não está apoiando, não está indo na casa dela... não vai conhecer a casa dela... pra saber não só como aquele irmão vive dentro da igreja, mas fora da igreja, quais as dificuldades que tem financeiramente, o que ele tem e o que ele não tem na casa dele, o que faz falta para ele”. Esse foi o comentário desse entrevistado (PL), demonstrando sua insatisfação em relação ao pastor. Para essa pessoa, esse pastor está mais preocupado com ele mesmo do que com os membros da sua igreja. Por detrás dos comentários dessa pessoa, ouve-se um grito de necessidade da proximidade pastoral. Seu desejo é que seu pastor fosse mais humano, conhecedor da sua realidade. Seu comentário final na entrevista foi: “há muitos membros de igreja hoje que não freqüentam porque falta esse relacionamento pastor-membro, membro-membro. Há muitas pessoas afastadas por esse motivo e quando se afasta, ninguém vai atrás”. Isso revela o desejo e a necessidade que as pessoas têm de serem cuidadas. Por mais que a sociedade pregue o individualismo, o ser humano é carente de cuidado e de relacionamentos.
3. Igreja como mercado e consumo
“A igreja hoje é um comércio”, disse um dos entrevistados (PL). Outro afirma, “as pessoas são muito descartáveis e além das pessoas serem muito descartáveis, vale mais o que elas têm para oferecer do que elas realmente são”. Note a indignação dessa pessoa sobre sua ex-igreja, ao responder a pergunta: “Quais os problemas mais graves que você tem visto na igreja ultimamente?” Ela assim diz: “Você vai lá [na igreja] para conseguir o que você quer. Eles fazem muito marketing. Acho que a igreja hoje virou marketing puro. Não tem outra coisa que define a igreja para mim a não ser marketing”. Ao ler essas frases você pode pensar que essas pessoas freqüentaram uma igreja neo-pentecostal. Atenção: todos os pesquisados foram membros de igrejas históricas. Foram igrejas que possivelmente em sua caminhada passaram a ter diferentes posturas diante das exigências mercadológicas, quem sabe usando a lógica do mercado e consumo. Certamente o consumo é ilusório e acaba cansando as pessoas. Os produtos são descartáveis. As promoções são intermináveis. A lógica da igreja é outra. Essas pessoas estão sendo ensinadas a serem servidas nas prateleiras da fé. Nossa identidade passa essencialmente pelo serviço ao outro. Cansada dessa lógica, essa pessoa disse: “vem [à igreja] e consiga isso, e consiga aquilo. Você terá isso e terá aquilo. A igreja não é desse jeito”.
Com muita propriedade, Wander de Lara Proença, um pesquisador sobre essas tendências do campo religioso brasileiro, afirma que:
Vivemos numa sociedade capitalista em que, sob muitos aspectos, cifras são vistas como sinônimo de sucesso. Assim, algumas práticas evangélicas atuais se expõem ao risco de se tornarem tão-somente uma oferta de produtos religiosos no já competitivo mercado de bens simbólicos submetidos à lógica do crescimento numérico de suas igrejas, ainda que para isso tenham de baratear a mensagem do evangelho ou, fazendo uma paráfrase bíblica, trocar o 'direito de primogenitura' por 'pratos de lentilhas' (...) Tem-se pregado um evangelho sem cruz, que não requer renúncia ao pecado e nem exige compromisso (Gn 25:33-34) (2004, p. 49).
Ao agir assim muitas igrejas oferecem justamente o que as pessoas buscam: soluções imediatas. Mas isso tem um preço, como o mercado também tem. Ao passarem por esse processo a conclusão óbvia que muitas pessoas chegam é que estavam sendo usadas e depois descartadas. Não é exatamente isso que acontece com muitos produtos do mercado de consumo? São colocados nas prateleiras e vitrines e depois de um tempo, o modismo passa, e o produto é descartado. Esses sentimentos de serem usadas e serem descartáveis surgirão. “Às vezes o interesse da igreja vem em primeiro lugar”, relata uma pessoa (PL). Não só o interesse da igreja às vezes em primeiro lugar, como também o interesse pastoral. Santos e Andrade afirmam:
Ele [pastor] é capaz de fazer tudo de acordo com os modelos que lhe são colocados. No entanto, corre o risco de perder a sua própria humanidade, e sua vocação de ser gente. Além do mais, sua prática aproxima-se de uma ação desumanizadora para ele mesmo e para as ovelhas de quem deveria cuidar. Tão somente cuidar! Ao invés de ovelhas a serem cuidadas, as pessoas tornam-se consumidoras de seu próprio produto religioso revestido de força carismática. Nesse ponto, as ovelhas tornam-se agente passivos de “seu” ministério, prontas e dispostas a colaborarem com “seu” percurso profissional-ministerial. O papel das ovelhas é o de serem coadjuvantes do ator principal do cenário eclesiástico, por meio de quem e para quem devem convergir todas as coisas (2006, p. 107).
“Como membro que estava na organização da igreja eu me sentia usada. E foi nessa hora que eu sai... Quando eu vi que eu seria usada por esse sistema, eu procurei sair. E isso me levou a um choque grande, uma tristeza profunda, enfim...” (PL).
Quando se chega a conclusão por parte dos membros que “a igreja hoje é um comércio” e que “as pessoas são muito descartáveis”, a decepção é inevitável e acabam se perdendo.
4. A drácma se perde dentro da própria casa
Quando se fala de pessoas decepcionadas, desiludidas, desapontadas e desencantadas pode se ter a tendência de pensar nas causas externas que provocam tais sentimentos. Certamente isso é parte da verdade. A outra parte da verdade é a que se refere às causas internas, produzidas dentro da própria igreja, provocando o abandono das pessoas. A igreja está perdendo para ela mesma!
Na parábola da Drácma Perdida Jesus nos ensina que a mulher perdeu sua drácma dentro de casa:
Ou qual é a mulher que, tendo dez drácmas e perdendo uma drácma, não acende a candeia, e não varre a casa, buscando com diligência até encontrá-la? E achando-a, reúne as amigas e vizinhas, dizendo: Alegrai-vos comigo, porque achei a drácma que eu havia perdido (Lc 15-9-8).
Uma igreja e pastorado que expressa cuidado fará como a mulher fez: varre a casa, e busca com diligência até encontrá-la. Ela varre sua própria casa; ela busca dentro de sua própria casa. Estava perdida dentro de casa. Mesmo sendo de forma metafórica, ilustra bem o fato de que também estamos perdendo nossas drácmas dentro da própria igreja. Normalmente esse processo de se perder dentro da própria casa não é do dia para a noite; é por vezes lento, mas contínuo. Na pesquisa (PL) havia a seguinte pergunta: “Que fatores foram determinantes na sua decisão de deixar a igreja? Fatores externos contribuíram no processo do seu afastamento da igreja?” Uma pessoa respondeu assim: “Não foi nada de fora que me buscou para fora. Mas o que foi de dentro que me puxou para fora”. Outra pessoa disse: “fui devagar... eu sai muito devagarzinho... foi bem devagar mesmo”. Nesse mesmo ritmo de saída, devagar, outra pessoa afirma: “Eu não deixei a igreja da noite para o dia. Foi gradualmente. Foi um processo demorado e muito doloroso”. E outra confirma: “eu fui parando aos poucos”.
O medo de tratar as coisas, de honestamente saber o que as pessoas estão pensando e sentindo, de se humilhar, de querer varrer a casa, faz com que não exista na comunidade ambientes que possam proporcionar diálogo, reflexões, autocrítica. As pessoas acabam ficando no seu próprio mundo e ao poucos, “devagarzinho”, como disse alguém, a drácma se perde. Um pastorado que não aceita críticas está à beira do precipício. Se as pessoas não tiverem um foro dentro da igreja para tratar das questões, certamente elas o encontrarão fora da igreja. “Fui me afastando e quando foi dada conta, já estava fora”, conclui essa pessoa.
A conversão não seguida de um discipulado que leva o membro à maturidade cristã propicia a evasão do membro da igreja. Ouçamos Campos, um missiólogo peruano:
Abundam os cristãos que pertencem a uma estrutura eclesial, “em plena comunhão”, porém que carece da identidade integral do discipulado cristológico. Eles vivem uma religiosidade que consiste em assistir aos cultos, cantar louvores, dançar ou remexer, bater palmas, ler as Escrituras, orar, ofertar, dizimar, confraternizar com os irmãos e regressar a casa. Todos se sentiram “nascidos de novo”! E muitos deles, carismáticos no espírito, não demonstram por seus frutos haver respondido ao discipulado integral e cristológico (2001, p. 53).
A maioria dos pastores afirma não ter tempo para o discipulado. As muitas atividades pastorais, especialmente administrativas e burocráticas, acabam deslocando uns dos principais eixos da ação pastoral: o discipulado.
A verdade que precisamos afirmar é que o ministério do discipulado é uma das tarefas mais difíceis dentre as muitas atividades pastorais. Talvez a razão principal dessa dificuldade seja que esse ministério toma muito tempo e energia do pastor (Barro, 2006, p. 107).
Jesus devotou tempo aos seus discípulos. Lucas registra na Narrativa da Viagem (de 9:51 a 19:27), o maior bloco textual, como Jesus discipulou seus seguidores. Foi certamente um discipulado missionário.
5. Manipulação, abuso de poder e institucionalização
John Stott faz uma afirmação muito forte acerca do mau uso do poder na liderança pastoral. Diz ele:
Estou firmemente convicto que existe muita autocracia nos líderes da comunidade cristã, em oposição ao ensino de Jesus, em vez de amor e bondade. Muitos se comportam como se acreditassem, não no sacerdócio de todos os crentes, mas no papado de todos os pastores. Nosso modelo de liderança é freqüentemente modelado mais pela cultura do que por Cristo (2007).
A palavra autocracia (gr autokráteia) significa:
1. Governo exercido por um só, com poderes absolutos e ilimitados. 2. Dominação política discricionária, exercida por uma pessoa ou um pequeno grupo de pessoas; pode assumir as formas de despotismo, tirania, ditadura e oligarquia, autarquia (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).
Infelizmente é necessário concordar com John Stott. “Nosso modelo de liderança é freqüentemente modelado mais pela cultura do que por Cristo”. Júlio Zabatiero, em seu artigo, “Até quando Senhor? Aspectos da cultura brasileira que influenciam a atividade pastoral”, relata um tipo de personalidade marcado na cultura brasileira que, de certa forma, modelou os pastores: o coronelismo. Para ele,
O “coronel” é a imagem típica do senhor autoritário. Dono de grande latifúndio, geralmente às custas de vários enterrros, o coronel manda e desmanda em suas terras, sua gente, seus capangas. O “coroné” é uma figura em extinção, mas não o coronelismo. O autoritarismo, representado pelo coronel, é característica onipresente da cultura brasileira (1984: p. 2).
Esse modelo cultural, travestido de uma autoridade espiritual que não se pode questionar, se traduz em abuso de poder. Poder aqui é para mandar e dominar. Não é poder para servir. Esses são os autocratas da fé, os donos do rebanho. Zabatiero ainda afirma que:
Há muitos coronéis no pastorado. Quer seu autoritarismo seja consente ou inconsciente, o fato é que eles abundam pelas igrejas. Em sua metodologia de trabalho eles tentam controlar tudo que se passa na igreja. Querem saber de tudo o que acontece, quem faz o quê, quem não faz nada, quais crianças fazem bagunça, quem está contra ele, etc (1984: p. 2).
Uma liderança assim esmaga as pessoas. Esses certamente confundem autoridade com poder. Autoridade se estabelece na base da conquista e confiança; poder na base da força. Muito da decepção nas igrejas está ao redor desse estilo de líderes. “Eu acredito que como pessoa eu fui manipulada, fui usada”, relata um entrevistado (PL). Outra diz que o estilo do seu pastor de liderar era “reprimindo e manipulando”. Segunda essa pessoa, “criando um monte de robozinho igual, pensando igual, querendo igual. Para mim, isso eu acho errado”. O líder autoritário acha que tudo pode e que as pessoas irão se subordinar sem nada fazer. Engano! Não foi o caso dessa pessoa:
A minha saída da igreja se deu a partir do momento que percebi que quem manda é uma determinada pessoa. Tudo acontece conforme a vontade dele. Eu respeito, mas não sou condizente com o que ele pensa. Esse foi um conflito muito grande. E eu só vi uma saída. O que mais eu poderia dizer? É uma questão de manipulação. Quando o poder se concentra na mão de dois, três, quatro homens, eles começam a ser ditadores (PL).
Uma liderança pastoral autocrática, “do sacerdócio do papado de todos os pastores” (Stott), certamente será seduzida pelo poder institucional, passando por cima das pessoas, manipulando e usando-as. Nesse sentido a pessoa passa a ser um instrumento para se obter sucesso. Barreto diz,
O principal objetivo da ação pastoral é a redenção humana em sua totalidade... não se pode colocar, como muitos se tem feito, a instituição, estruturas e leis acima das pessoa humana. Jesus, constantemente, condenou os publicanos e fariseus por colocarem a Lei e as tradições acima da pessoa humana (1999, p. 56-57).
Santos e Andrade, refletindo sobre o poder da instituição, de maneira clara e objetiva, afirmam que:
A prática pastoral, por sua vez, foi formatada de acordo com essas mudanças que centralizam na instituição o poder de determinação do vir a ser das comunidades. Ela tende a reproduzir o modelo institucionalizado e conformador de padrões. A pessoa do pastor passou a ser vigiada pela instituição que procurava cadê vez mais aprimorar os mecanismos de controle sobre o indivíduo. O líder passou a submeter-se ao tipo de controle muitas vezes arbitrário do órgão a que estava ligado ou aderir ao jogo de poder que a intuição lhe propõe, tornando-se um elemento orgânico na engrenagem institucional. E, como tal, reproduzir a visão hierarquizada da relação pastor-ovelha (2006, p. 59).
6. Membros invisíveis
O desprezo dói muito. “A única expectativa que eu tinha era no mínimo que o pastor da igreja viesse falar comigo, coisa que nunca aconteceu”, relata essa pessoa (PL). Quem já experimentou o desprezo sabe que é pior do que uma agressão externa. A dor interior é muito profunda, pois ser desprezado pode implicar também em ser ignorado. Essas pessoas existem, mas se tornam invisíveis. Na pesquisa (LR) revelou que 16% das pessoas que deixaram a igreja disseram que ninguém entrou em contato com elas depois que saíram e outras 16% relataram que ninguém parecia se importar com o fato de terem saído.
A porta dos fundos representa um grande desafio para a igreja. Uma grande porcentagem das igrejas possui um comitê de recepção dos visitantes. Raras são as igrejas que possuem um comitê de integração (medida preventiva de saída) e re-integração dos membros. Normalmente essa invisibilidade está em torno dos relacionamentos. Isso é expresso no sentimento desse entrevistado: “... eles [pastores] deveriam repensar a maneira como eles estão vivendo e como a sua igreja está vivendo, de como seus membros estão se relacionando... há muitos membros de igrejas hoje que não freqüentam porque falta esse relacionamento pastor-membro, membro-membro. Há muitas pessoas afastadas por esse motivo e quando se afasta ninguém vai atrás”, conclui (PL).
É necessário ouvir as palavras de Lesslie Newbigin, ao comentar João 10, sobre o Bom Pastor, quando Ele chama as suas ovelhas pelo nome:
Ele chama as suas próprias ovelhas pelo nome. Eu esqueço os nomes das pessoas, e eu sei o que esse esquecimento realmente significa. Significa que no fundo do meu coração eu estou mais interessado nos programas que estou tentando fazer as pessoas se envolverem mais do que com as próprias pessoas. Quando você chama uma pessoa pelo nome, isso significa que você se preocupa com a pessoa como uma pessoa. E nada, além disso, é uma verdadeira reflexão do modo como Deus olha seu povo (1997, p. 14).
Umas da perguntas da pesquisa (PL) foi: “Em relação a sua saída, que expectativas você aguardou da igreja?” Uma pessoa menciona que quando existe uma ovelhinha que precisa de cuidado, é necessário deixar as outras (noventa e nove) para cuidar dela. Contudo, em relação a sua igreja, sua expectativa quando se afastou, essa pessoa diz: “... nunca esperei isso da minha igreja porque eu a conhecia. Não, não, em nenhuma hipótese”. Essa pessoa já sabia de antemão qual iria ser a postura da igreja em relação a sua saída. Seria pelo fato de esse ser o padrão estabelecido em relação às outras pessoas que também já tinham saído? Ao responder essa mesma pergunta, um outro entrevistado disse assim: “Nenhuma, nenhuma, eu os conhecia muito bem para esperar alguma coisa deles. O que eu esperava foi o que aconteceu, falatórios”.
Parece que a pior desgraça é deixar as pessoas no esquecimento, fingir que elas não existem, torná-las invisíveis.
Conclusão
A última pergunta feita aos entrevistados (PL) estava relacionada com um possível retorno dessas pessoas para a igreja. “O que precisaria acontecer para você voltar ao convívio de sua igreja?” Veja algumas das respostas: “Da igreja que eu fui? Isso eu acho que seria impossível. Eu não quero. Eu não sinto necessidade... Não tenho interesse que as coisas voltem do jeito que era antes. Aquela lá, não mais”. Uma outra pessoa disse: “Não tenho vontade de retornar à igreja nem de fazer parte de qualquer igreja”. Na mesma tônica, encontramos outra pessoa afirmando que “eu não sinto vontade nenhuma... hoje estou muito bem, voltar eu não volto mais... não é uma coisa que me agrada”. Finalmente, essa pessoa diz que o que precisa acontecer para ela voltar é, em suas palavras, “eu querer”. Mas ela quer? Conclui então, “ai não vai ser na igreja que eu estava”.
É muito triste entrevistar pessoas que participaram ativamente nas igrejas, professaram sua fé em Cristo, exerceram cargos de liderança, e que hoje estão fora não só da igreja que freqüentavam, como fora totalmente de qualquer outra. É duro ouvir frases como essas (extraídas dos entrevistados da PL):
“Não tenho vontade de retornar à igreja nem de fazer parte de qualquer igreja”
“A igreja não me faz falta nenhum um pouco à minha fé”
“Preferi me afastar”
“Como pastor para mim não serve”
“Eu me senti usada”
“Quando se afasta ninguém vai atrás”
“Eu hoje estou muito bem. Voltar eu não volto mais”.
Quais pistas poderíamos destacar nessa reflexão para que se pudesse olhar com mais cuidado a questão dos decepcionados com a igreja?
1. A fragmentação do campo religioso corrói a noção e conceito de lealdade institucional e denominacional.
2. A cidade, com seu estilo de vida urbano, e especialmente a sociedade secularizada, influencia na evasão do membro da igreja.
3. A perda da legitimidade das denominações, instituições e da própria liderança pastoral contribuem para a evasão dos membros.
4. A conversão não seguida de um discipulado que leve o membro à maturidade cristã propicia a evasão do membro da igreja.
5. A institucionalização despersonalizou o ser humano na medida em que os cânones e regras foram mais enfatizados em detrimento dos relacionamentos interpessoais. O membro é visto mais como número, especialmente por aqueles que têm no crescimento da igreja sua obsessão, e não como uma pessoa que tem nome e identidade própria.
6. A disciplina exercida pela igreja quase sempre conduz o membro para fora, em vez de restaurá-lo.
Definitivamente deveríamos nos preocupar mais com o tema dos decepcionados com a igreja, pois muito provavelmente essa é a maior igreja em quase todas as cidades brasileiras. É a igreja dos que estão fora da igreja. Constituída de pessoas que, passo-a-passo se aproximaram da porta dos fundos. Ficaram circulando por ali, e sem serem notadas, passaram pela porta, atravessaram a rua, dobraram a esquina e sumiram.
É necessário também reconhecer que para o ser humano, seja ele religioso ou a-religioso, se decepciona muito facilmente. Não é necessário nenhum grande esforço para que as pessoas fiquem decepcionadas. O melindre infelizmente faz parte da vida. Basta uma palavra infeliz, um comentário fora de tempo, uma visita não feita, uma data esquecida e coisas do tipo, o ser humano já fica decepcionado e, a partir de sua decepção, acaba generalizando a sua experiência afirmando que toda igreja é assim, que todo pastor é assim, que todos os evangélicos são assim. De fato, muitos decepcionados procuram se esconder atrás de alguém, expiando nessas pessoas as suas mazelas. Isso merece uma pesquisa de campo também.
Essa reflexão nos desafia a olharmos mais cuidadosamente a porta dos fundos da igreja. Cuidar é amar. O amor gera atitude. Os líderes da igreja são chamados para cuidar do “rebanho sobre o qual o Espírito Santo os colocou como bispos, para pastorearem a igreja de Deus, que ele comprou com o seu próprio sangue” (At 20:28). Cuidar é fechar a porta dos fundos! Caso contrário, o número dos filhos pródigos da igreja irá aumentar mais e mais.
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