Sociedade mais que fria, morna… menos quente
A pós-modernidade tem produzido um sujeito que a sociologia denomina de “líquido, flexível”, e que forma um conjunto ou grupo social, gerador de insegurança, imprevisibilidade, medo, desconfiança e infidelidade. Para alguns teóricos, vivemos em uma sociedade “provisória”.
A nossa sociedade se encontra confusa, mudando com a rapidez de uma nave espacial, destruindo com facilidade a capacidade de amar, de manter amizade e conquistar amigos. Somos, sim, um mundo furiosamente individualizado. Nossos relacionamentos oscilam entre o sonho e o pesadelo. Parece que só queremos uma amizade se esta suprir as nossas necessidades momentâneas.
Não tem como esconder uma dura realidade: nosso século produziu um sujeito descartável, inconveniente, demasiadamente flexível, líquido, sem amor, sem temor, sem aliança com a espiritualidade altruísta. Não passamos de estatísticas, números. Como ser que produz uma subjetividade, somos desconhecidos e desrespeitados.
Estamos parecidos com os habitantes de Leônia, cidade invisível de Ítalo Calvino, que afirmava que a paixão deles era “desfrutar coisas novas e diferentes” e que jogavam as “sobras no caminhão de lixo”, sem falar que “demonstravam preocupação com uma coisa, falando de outra”, denotando um comportamento dúbio, cujo modelo retrata “a mão que acaricia é a mesma que machuca, esmaga”. Significa que priorizar uma amizade pode traduzir muita dor de cabeça, talvez uma incerteza permanente. O doloroso é saber que não fomos feitos para vivermos sozinhos, haja vista que a solidão produz insegurança.
No sermão sobre o fim da civilização, Cristo previu que a “iniquidade cresceria tanto que o amor iria esfriar” (Mt 24:12). Que amor? Ora, o amor pelo próximo. O amor por si próprio. O amor pela família. O amor pela vida espiritual. O amor pelas instituições.
Por que Cristo se referiu logo ao amor? Porque o amor é a vontade de cuidar, de preservar, de contribuir para o mundo. É estar a serviço. É colocar-se à disposição. É aguardar a ordem. Sem humildade e coragem não há amor. A questão toda é que temos produzido uma cultura, a cultura da imediatez. Ora, precisamos entender que nossa vida está amarrada ao tempo e por ele é nutrida. Então, devemos trabalhar nossas emoções e capacitá-las a aprender a esperar. Desculpem-me, mas precisamos diminuir a família de anões do pensamento que tem povoado nosso grupo social. Necessitamos ensinar o povo a refletir, pensar, observar e detectar os fatos, sobretudo nas suas entrelinhas.
No Apocalipse, quando isolado na ilha de Patmos, o evangelista João teve uma visão sobre o fim de todas as coisas, e previu como seria o comportamento da sociedade com relação aos vínculos, contratos, alianças, compromissos, fidelidade, honestidade, lealdade, ética, respeito e solidariedade, tanto no contexto interpessoal como institucional. E classifica a relação do homem para com Deus em três níveis: frio, morno e quente (Ap 3:16).
Já o apóstolo São Paulo, escrevendo ao jovem Timóteo, afirmou que o sujeito do final dos tempos seria amante de si mesmo, avarento, presunçoso, soberbo, blasfemo, desobediente aos pais, ingrato, profano, sem afeto natural, irreconciliável, caluniador, incontinente, cruel, sem amor para com os bons, traidor, obstinado, orgulhoso, mais amigo dos prazeres do que de Deus, demonstrando piedade, mas negando-a com suas atitudes (2 Tm 3).
Não podemos negar que esse sujeito vive hoje também dentro da comunidade cristã, causando transtorno, cobrando algo que ele mesmo não produz, distorcendo a Palavra, exigindo ser aceito de conformidade com o que ele acha certo. Enfim, levando muitos a duvidarem de Deus, a se decepcionarem com a Igreja, produzindo e forçando o cultivo de uma espiritualidade sem vida dentro do grupo social-espiritual.
A mensagem de João ia de encontro aos “cristãos” de Laodiceia, que confiavam muito mais na riqueza material do que na Palavra de Deus. Daí não serem “quentes” no sentido de terem uma fé que convergisse para Deus. Nem eram “frios”, no sentido de serem animados, revitalizados, como água que traz vida ao deserto. Eram “mornos” espiritualmente falando. Tornaram-se “cristãos de fachada”, mantendo as aparências, mas não guardavam os ensinamentos de Cristo em seus corações. Então, veio a exortação, pois, se não mudassem o proceder, não seriam aprovados por Deus.
Ao olharmos para o tecido social evangélico brasileiro, verificamos como temos produzido comportamentos que nos distanciam, gradativamente, do ponto de partida, da origem, do centro, do alicerce, do fundamento, daquilo que o Nosso Senhor Jesus sonhou para sua Igreja.
A mídia nos mostra dia após dia o surgimento de igrejas que de “ekklesia” nada têm. Igrejas gospel, afro-evangélico, inclusiva, surfista, automotivas, lutas-livres, sexo e pão... Meu Deus, faltaria espaço para elencar nomes e tipos de grupos que se dizem igrejas, dentro de um contexto afirmativo de que “Deus é amor”, que Ele ama a todos do jeito que são! É obvio que Deus é amor, mas quem conhece a essência da Palavra sabe que não se procede assim.
No texto em epígrafe, a linguagem é clara, vívida, embora sem ornatos. Podemos ver que os laodicenses não somente foram denunciados, mas o foram com a máxima abominação, porque fica constatado que o cristão morno é aquele que serve a Deus e a Mamom, que oscila entre duas opiniões, às vezes dando pouco valor a ambas. Quanto ao frio, por si só já diz tudo, não tem vida, não produz vida, não busca a vida. Está inerte, insensível, nada sente, está putrefato, cheio de secreções que lhe fazem perder a saúde, o “tecido” espiritual, social e moral.
Em síntese, precisamos entender com urgência que o Evangelho não é uma possibilidade de salvação, mas a única possibilidade de salvar, transformar, restaurar, modificar, perdoar, limpar, oxigenar e produzir um novo homem, não apenas teológico, mas sociológico, psicológico, profissional e que viva uma vida intimista com o Redentor.
Como igreja, temos, sim, de sair desse espectro social prejudicial que o kosmos está produzindo, e viver, custe o que custar, o glorioso Evangelho. O Evangelho da fé, e não da mercantilização. O Evangelho do calvário, e não da heresia. O Evangelho que priorize a doação, e não a arrecadação. Já passa da hora de agirmos!
Como disse São Paulo: “Rogo-vos, pois, irmãos, que vos apresenteis a Deus através de um culto racional, não vos conformado com este mundo, mas transformando pela renovação da mente” (Rm 12:1-2).
Que Deus nos ilumine!
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