2015/03/21

A rebelião dos canários



A rebelião dos canários
Os mineiros tinham, até bem adiantado o século XX, uma técnica infalível para se protegerem nas profundidades da rocha: os canários.
A pequena ave, mais sensível que o homem à falta de oxigênio e aos gases tóxicos, morreria primeiro que estes se nas minas houvessem gases venenosos ou demasiado monóxido de carbono. Se os mineiros vissem os canários morrerem ou asfixiarem-se, sabiam que deviam abandonar a mina a toda velocidade. O canário era o primeiro que sofria por um mal que acabaria por matar a todos.
Em Skopje, na ex-Iugoslávia, encontrei certa vez um ancião que havia sobrevivido à história eriçada de guerras de seu país. Contou-me o segredo de sua sobrevivência: "Quando os judeus são perseguidos ou escapam – disse com sua boca desdentada – é hora de fazer as malas".
O ancião iugoslavo tinha razão: na história moderna os judeus foram os "canários" do mundo. Elementos minoritários e vulneráveis da sociedade, os judeus sempre foram o primeiro alvo dos movimentos de destruição e desumanização.
Na Inglaterra do "apaziguamento", Winston Churchill denunciava o verdadeiro caráter da Alemanha nazista. Um regime que começa perseguindo os judeus – dizia Churchill – cedo ou tarde ameçaria a liberdade e a vida de todos.

A temperança moral do mundo é posta à prova. Se os judeus podem ser perseguidos ou assassinados impunemente – raciocinam os tiranos – então se pode passar para o próximo passo. Todas as grandes ditaduras de nossa época – nazismo, stalinismo, esquerda, direita – tiveram os judeus como o alvo predileto e como coelhinhos da Índia de sua violência assassina. Todas terminaram por causar milhões de mortos de todas as nações.
Se o gás mata o canário, cedo ou tarde matará o mineiro. E isto é o que sucede hoje em dia com o fundamentalismo islâmico. O integrismo é o novo totalitarismo que ameaça as sociedades ocidentais. Sob um verniz de conceitos religiosos, o fundamentalismo é uma doutrina política totalitária e fascista. Israel e os judeus foram o seu primeiro alvo e, graças à indiferença do mundo, agora o flagelo estende-se por qualquer lugar como uma impiedosa epidemia.
Quando israelenses morrem despedaçados pelas bombas terroristas, o mundo se cala. Vozes de condenação se levantam contra Israel e não contra os assassinos. Os algozes e não as vítimas recebem a solidariedade do mundo. O israelense entre as nações ocupa o mesmo lugar que o judeu entre os povos: o eterno culpado, o vilificado, o causador de problemas. Israel é acusado de causar o terrorismo islâmico. Na realidade, o Estado judeu é sua primeira vítima e é um campo de provas para os assassinos.
A covardia e a indiferença do mundo ao lidar com o terrorismo convenceu os assassinos de que poderiam atacar os Estados Unidos, a Europa e a Ásia. Assim, o terrorismo converteu-se num mal em escala mundial.
Houve também outros "canários" na história moderna. Em 1938 o estado pacífico e democrático da Checoslováquia foi a primeira vítima de Hitler. Foi um balão de ensaio do nazismo. Se Praga caísse, cairiam também Varsóvia, Amsterdã, Paris e Londres. No infame tratado de Munique, as potências democráticas claudicaram ante Hitler que, convencido de sua debilidade, sentiu-se confiante para lançar a Segunda Guerra Mundial.
A lógica de Munique continua viva, tanto na Europa quanto nos assassinos. Quando a voracidade de Hitler reclamava a Checoslováquia, França e Inglaterra assinalavam o pequeno país centro-europeu como o culpado de uma tensão que levaria à guerra. "Esse país insolente deve ceder – dizia Chamberlain, referindo-se à Checoslováquia – para salvar a paz". Praga foi forçada a ceder, a Checoslováquia desapareceu e ainda assim começou a guerra. Hoje em dia a mesma lógica se aplica a Israel. Frente ao terrorismo, Israel deve ceder, para salvar a paz.
A falácia desse argumento é óbvia: o fundamentalismo islâmico não busca a reivindicação territorial, senão a destruição de Israel e do Ocidente em seu conjunto. Frente a esta realidade, o Ocidente e especialmente a Europa são suicidamente cegos.
Se, como a Checoslováquia, Israel cair ante o fundamentalismo, qual será o próximo passo? A França, que tem em seu seio milhões de muçulmanos e onde os grupos fundamentalistas ganham cada vez mais poder? A Inglaterra, onde imãs fundamentalistas queimam bandeiras inglesas?
O que o Ocidente parece não entender é que Israel é o campo de batalha onde está lançado seu próprio futuro. Se Israel cair frente ao terrorismo, então todo o Ocidente estará ameaçado. As mesmas redes de tráfico de armas e dinheiro que os terroristas usam para atacar Israel são utilizadas para atacar os Estados Unidos e outros países ocidentais.
Im’ad Magnia, o assassino do Hezbollah que organizou o atentado à AMIA, foi ativo na rede que promoveu a tragédia do 11 de setembro. Ramzee Yussef, o líder do primeiro atentado às torres gêmeas em 1993 começou no Hamas. O Irã arma o Hezbollah e com as mesmas redes comandou o assassinato de dissidentes nas ruas de Berlim.
Em Istambul, a estratégia dos "judeus primeiro, depois o resto" é ensaiada com sangrenta eficácia: duas sinagogas foram atacadas e só uns poucos dias depois alvos ingleses e turcos também o foram.
Berlim e Jerusalém: Durante a Guerra Fria, o mundo pareceu ter aprendido. O Ocidente se deu conta de que Berlim era o canário que não podiam deixar morrer. Enquanto a ditadura comunista construía o muro de Berlim, John F. Kennedy visitou a cidade sitiada e clamou: "Eu sou um berlinense". Estava enviando uma mensagem clara e forte: Se Berlim é atacada, todo o Ocidente o é. Se deixamos Berlim cair, isolada e fechada em um mar de forças hostis, então nós seremos os próximos.
Israel – curioso paradoxo – é como Berlim: um oásis democrático e ocidental rodeado de forças hostis e de um mundo árabe em crescente radicalização. Assim como Berlim podia ser deglutida pela "maré" soviética, Israel pode desaparecer sob 20 ditaduras árabes.
Porém, a lucidez do mundo – em especial da Europa – durou pouco. A cegueira judeofóbica não deixa ver o óbvio e empurra a Europa para uma espiral suicida. Ao invés dee olhar o problema de frente, os europeus consideram Israel como "um perigo para a paz". Igualmente foi ridículo considerar Berlim – e não os que a ameaçavam – como um perigo para a paz. A mesma cegueira que fez com que Chamberlain chamasse Benès (o líder checoslovaco) de insolente e não a Hitler.
Aos franceses, que por moda ou ódio judeofóbico acusam Israel de ser "o país que mais ameaça a paz mundial", lhes perguntaria: Se o Hamas vence, como deterão os fundamentalistas da França? Na mente dos fundamentalistas, a queda de Israel aplainará o caminho para futuras conquistas, no coração mesmo da Europa.
Devido à cegueira e à covardia de Munique, a França passou a ser, de primeira potência do mundo a um patético país de terceira, e a Europa perdeu para sempre seu espaço de proeminência. Agora, graças a seu anti-semitismo e à sua hipocrisia, permitirá ao fundamentalismo islâmico reinar sobre o continente.
A Europa pensa "se Israel não existisse, o mundo seria um lugar mais seguro" da mesma maneira que pensava "se a Checoslováquia não existisse, a Europa estaria mais segura".
É tão ridículo como um mineiro que veja o canário sofrer se enoje com ele, em vez de pensar que ele e seus companheiros correm sério perigo.
A "correção política" e a covardia não deixam atacar o problema na raiz. Experts alemães realizaram, a pedido da União Européia, um estudo sobre os atos de anti-semitismo que assolam o continente. A conclusão foi taxativa: elementos radicais muçulmanos estavam por trás da onda de violência antijudaica e a "nova esquerda" dava legitimação e sustento ideológico aos ataques. A demonização de Israel na mídia, coadjuvava a violência.
A reação das autoridades frente a este estudo mostra porque a Europa vai direto ao desastre: o relatório foi engavetado por considera-lo demasiado "ofensivo". Em vez de fazer frente ao problema e tomar medidas enérgicas, a comissão encomendou outro relatório "mais balanceado".
Alguém dirá: "Sim, porém, e os palestinos?" "Eles são os oprimidos e não Israel". A atitude da Europa não tem nada a ver com os justos reclamos dos palestinos.
Também durante Munique os sudetos de origem alemã (no Oeste da Checoslováquia) foram considerados oprimidos. Eles foram a desculpa de Hitler para reclamar o desmantelamento do pacífico país centro-europeu, mesmo tendo Praga acedido a quase todas as demandas de autonomia dos sudetos.
Israel, tal como os judeus, não é odiado pelo que faz, senão pelo que é. Israel é odiado por ser um oásis democrático e ocidental num mar de ditaduras. Israel é odiado por apoiar-se em valores de humanidade e liberdade cercado de tiranias sangrentas. Israel é odiado porque representa um exemplo nefasto para ditadores e tiranos. Não são os defeitos de Israel que os terroristas odeiam – os quais existem em abundância -, mas suas virtudes. A Intifada não foi lançada por causa da falta de negociações de paz, mas para fazê-las fracassar. Os atentados suicidas começaram em pleno processo de paz, foram causa e não conseqüência de seu fracasso. Aos olhos da Europa Arafat ganhou popularidade e legitimidade precisamente após rechaçar a paz e lançar uma guerra.
A falácia de que maiores concessões por parte de Israel deterão o terrorismo é tão óbvia quanto perigosa. Os que ainda crêem, como a autora destas linhas, na justiça do reclamo palestino e na necessidade de um Estado palestino ao lado de Israel, devem saber que o terrorismo – e a hostilidade da Europa – têm pouco a ver com essa reivindicação.
A solidariedade com os palestinos é, talvez, uma das maiores hipocrisias do século. A Europa que colonizou o mundo árabe, que oprime suas próprias minorias muçulmanas e que cala complacente frente às tiranias que assolam o mundo muçulmano, se descobre como campeã dos direitos humanos precisamente no tema palestino.
A Europa, que – como a França – interveio dezenas de vezes em suas ex-colônias africanas, lava suas culpas nas costelas de Israel. A Europa que inventou o colonialismo, o genocídio e o totalitarismo, converte as vítimas em culpados. A Europa jamais protestou quando os palestinos eram submetidos pelo Egito, Síria e Jordânia. Tampouco quando o Kuwait expulsou 300 mil palestinos de seu território. Só quando Israel é o suposto "perpetrador", a solidariedade se faz ver.
Longe de ser solidária, a Europa trata outra vez de "apaziguar" assassinos. Os que pagam, são outra vez os judeus. Se não temos canários – pensaria um mineiro néscio e suicida – então não haverá gás tóxico na mina. Se não existisse Israel – pensam europeus covardes e anti-semitas – então não haveria fundamentalismo islâmico. Os europeus são – nas palavras do grande Milan Kundera – "os engenhosos aliados de seus próprios coveiros".
Israel, é como disse um jornalista israelense, um país "on probation". O problema não são os territórios ocupados, nem o conflito palestino. O tema é o direito de Israel existir. Sua legitimidade. Nenhum outro país do mundo tem sua existência questionada. Inclusive os que crêem na necessidade de entregar territórios em troca da paz, não devem enganar-se. A hostilidade da Europa não tem nada a ver com os territórios.
Em uma notória pesquisa, 19% dos italianos disseram que Israel deveria deixar de existir. Mais revelador que o resultado é propriamente a pergunta: Por que é legítimo para um pesquisador europeu pôr em dúvida o direito de Israel existir e não o da Índia, Síria, França ou Itália?
Israel tem que pedir permissão e perdão pelo mero fato de existir. Quem acompanha atentamente as emissões televisivas européias verá que já não se debate acerca de tal ou qual plano de paz, nem acerca de regras territoriais. O debate centra-se em deslegitimizar a existência do Estado.
A "nova esquerda", que na realidade tem pouco de nova e muito do ranço stalinista totalitário, converteu em legítimo o anti-semitismo e a deslegitimização de Israel. Os anti-semitas modernos já não são velhos nazistas ou fascistas repulsivos, senão intelectuais progressistas e da moda. Como diz Alain Finkielkraut, "é o tempo dos anti-semitas simpáticos".
O filósofo judeu-francês – que, diga-se de passagem, é um antigo militante pela causa palestina – queixa-se amargamente: "os debates nos quais participamos não são discussões, senão tribunais". Aceita-se a terrível irracionalidade de ser anti-semita como condição necessária para ser liberal e anti-racista.
O "direito de solo" que os intelectuais judeus têm que pagar para serem aceitos continua subindo: se antes tinha que ser pró-palestino, agora há que franca e plenamente negar o direito a Israel de existir.
A sociedade e os meios de comunicação colaboram ativamente. "Quando Le Pen – líder da extrema direita francesa – atacava os judeus, era condenado unanimemente; quando Tarik Ramadam – pseudo-intelectual muçulmano de esquerda – lança uma lista de ‘judeus suspeitos’, é convidado a explicar sua posição em ‘tout le monde en parle’ (um programa da atualidade muito em moda na elite artística e intelectual francesa).
Se houvesse objetividade, se poderia lutar com a mesma força pelos direitos dos palestinos e pelo direito de Israel de existir livre e seguro, como um estado judeu e democrático.
Paradoxalmente, as posturas israelenses mais extremas se vêem fortalecidas por esta atitude. Se o que se nega é a existência mesma do Estado, inclusive em suas fronteiras de 1967, – pensa a extrema direita – então, de que serve fazer dolorosas concessões?
Se o que se deslegitimiza é Tel Aviv, então para que renunciar a Hebron? O argumento é logicamente irreprovável. Para que ceder territórios que se tenham no coração da consciência histórica judaica, se esse sacrifício não nos assegurará a paz, o reconhecimento e a segurança?
Frente a isto, a esquerda se vê esvaziada de argumentos e impelida aos extremos, e os que desejam um acordo baseado em concessões mútuas sentem-se como ingênuos que ignoram os verdadeiros motivos de seus adversários.
Quando o presidente francês Deladier voltou de Munique esperava ser linchado por sua claudicação ante Hitler. Em vez disso, foi recebido por uma multidão que o ovacionava por ter salvado a paz. Ninguém queria "morrer pela Checoslováquia". Fingindo um sorriso, voltou-se para seu ministro das Relações Exteriores e murmurou: "Quels cons!" (Que imbecis!).
As similitudes com a época atual são arrepiantes. Líderes que legitimam ditadores e assassinos são tratados como "heróis da paz", enquanto asseguram um futuro de mais guerra e terrorismo. Pergunto-me se enquanto desfrutava de sua excitação midiática anti-americana e anti-israelense, Jacques Chirac se havia voltado para Dominique de Villepin para dizer "Quels cons"…
Canários indóceis.
Bem, agora suponhamos que em uma mina, os canários digam basta! Basta de morrer para alertar os mineiros de perigos iminentes. Basta de sofrer, porque de todos os modos os mineiros não nos prestam atenção e seguem envenenando-se lentamente com os gases tóxicos da mina.
Basta de morrer gratuitamente, porque a triste verdade é que aos mineiros não importa. Basta de asfixiar-nos por nada, porque a única coisa que recebemos é o ódio e não a solidariedade dos mineiros aos quais salvamos. Basta, porque os mineiros jamais aprenderão a lição e jamais entenderão que se nós morrermos, morrerão eles também. Basta, porque nem sequer cuidam de nós, para cuidarem-se a si mesmos.
Basta. Nos negamos a ser as cobaias da mina; vamos fazer o que fazem todos os demais: defender nossa própria vida antes de tudo.
Esta é a legítima escolha de Israel hoje.
* Pilar Rahola foi deputada no Parlamento espanhol pela "Izquierda Republicana Catalana" e vice-prefeita da cidade de Barcelona. Escreve nos jornais El País, El Periódico e Avui (em catalão). Dirige o programa de entrevistas na TV espanhola. Além disso, participa de debates públicos e congressos internacionais sobre a temática da mulher e da infância. Tem vários livros publicados em catalão e castelhano.

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