A pietas de Calvino não subsistia à parte das Escrituras ou da igreja. Pelo contrário, era fundamentada na Palavra e nutrida na igreja. Embora tenha rompido com o absolutismo da Igreja de Roma, Calvino tinha um elevado ponto de vista sobre a igreja. "Se não preferimos a igreja a todos os outros objetos de nosso interesse, somos indignos de ser contados como membros da igreja", ele escreveu.
Agostinho dissera: "Aquele que se recusa a ter a igreja como sua mãe não pode ter a Deus como seu Pai”. Calvino acrescentou: "Não há outra maneira de entrarmos na vida, se esta mãe não nos conceber em seu ventre, der-nos à luz, alimentar-nos em seu seio e, por último, não nos manter sob os seus cuidados e orientação, até que, despidos desta carne mortal, nos tornemos como os anjos". À parte da igreja, há pouca esperança de perdão dos pecados ou salvação, Calvino escreveu. Sempre é desastroso deixar a igreja.
Calvino ensinava que os crentes estão enxertados em Cristo e sua igreja, pois o crescimento espiritual ocorre na igreja. A igreja é a mãe, educadora e nutridora de todo crente, visto que o Espírito Santo age na igreja. Os crentes cultivam a piedade por meio do Espírito Santo mediante o ministério de ensino da igreja, progredindo da infância espiritual à adolescência e à maturidade em Cristo. Eles não se graduam na igreja enquanto não morrem. Essa educação vitalícia é oferecida numa atmosfera de piedade genuína, uma atmosfera na qual os crentes cuidam uns dos outros em submissão à liderança de Cristo. Essa educação encoraja o desenvolvimento dos dons e do amor uns dos outros, uma vez que somos "constrangidos a receber dos outros".
O crescimento na piedade é impossível sem a igreja, porque a piedade é fomentada pela comunhão dos santos. Na igreja, os crentes "se unem uns aos outros na distribuição mútua dos dons". Cada membro tem o seu próprio lugar e dons para serem usados no corpo. Idealmente, todo o corpo usa esses dons em simetria e proporção, sempre reformando e desenvolvendo em direção à perfeição.
A PIEDADE DA PALAVRA
A Palavra de Deus é central ao desenvolvimento da piedade no crente. A piedade genuína é uma "piedade da Palavra". O modelo relacional de Calvino explica como.
A verdadeira religião é um diálogo entre Deus e o homem. A parte do diálogo que Deus inicia é a revelação. Nisso, Deus vem ao nosso encontro, fala conosco e se nos torna conhecido na pregação da Palavra. A outra parte do diálogo é a resposta do homem à revelação de Deus. Essa resposta, que inclui confiança, adoração e temor reverente, é o que Calvino chama de pietas. A pregação da Palavra nos salva e nos preserva, enquanto o Espírito nos capacita a apropriar-nos do sangue de Cristo e responder-Lhe com amor reverente. Por meio da pregação de homens dotados de poder pelo Espírito Santo, "a renovação dos santos se realiza, e o corpo de Cristo é edificado", disse Calvino.8
A pregação da Palavra é o nosso alimento espiritual e o remédio para nossa saúde espiritual. Com a bênção do Espírito, os pastores são médicos espirituais que aplicam a Palavra à nossa alma, assim como os médicos terrenos aplicam remédio ao nosso corpo. Com a Palavra, esses médicos espirituais diagnosticam, prescrevem remédios e curam doenças espirituais naqueles que estão contaminados pelo pecado e pela morte. A Palavra pregada é um instrumento para curar, limpar e tornar frutífera nossa alma propensa a enfermidades.9 O Espírito, ou "o ministro interior", desenvolve a piedade usando o "ministro exterior" na pregação da Palavra. Conforme disse Calvino, o ministro exterior "proclama a palavra falada, e esta é recebida pelos ouvidos", mas o ministro interior "comunica verdadeiramente a coisa proclamada... que é Cristo".10
Para desenvolver a piedade, o Espírito usa não somente o evangelho para produzir fé no profundo da alma dos seus eleitos, como já vimos, mas também a lei. A lei promove a piedade de três maneiras:
1. A lei restringe o pecado e promove a justiça na igreja e na sociedade, impedindo que ambas cheguem ao caos.
2. A lei disciplina, educa, convence e nos move de nós mesmos para Jesus Cristo, o fim e o cumpridor da lei. A lei não pode nos levar a um conhecimento salvifico de Deus em Cristo. Pelo contrário, o Espírito Santo usa a lei como um espelho para nos mostrar nossa culpa, nos privar da esperança e trazer-nos ao arrependimento. Ela nos conduz à necessidade espiritual que gera a fé em Cristo. Esse uso convencedor da lei é essencial à piedade do crente, pois impede a manifestação da justiça própria, que é inclinada a se reafirmar até no mais piedoso dos santos.
3. A lei se torna a norma de vida para o crente. "Qual é a norma de vida que Deus nos outorgou?" Calvino pergunta no catecismo de Genebra. E responde: "A sua lei". Posteriormente, Calvino disse que a lei "mostra o alvo que devemos ter em vista, o objetivo que devemos perseguir; e que cada um de nós, de acordo com a medida de graça recebida, pode se esforçar para estruturar sua vida em harmonia com a mais elevada retidão e, por meio de estudo constante, avançar cada vez mais, ininterruptamente.
Calvino escreveu a respeito do terceiro uso da lei na primeira edição de suas Institutas: "Os crentes... se beneficiam da lei porque dela aprendem mais completamente, cada dia, qual é a vontade do Senhor... Isto é como se um servo, já preparado com total disposição de coração para se recomendar ao seu senhor, tivesse de descobrir e considerar os caminhos de seu senhor, para se conformar e se acomodar a estes. Além disso, embora sejam impulsionados pelo Espírito e mostrem-se dispostos a obedecer a Deus, os crentes ainda são fracos na carne e prefeririam servir ao pecado e não a Deus. Para a nossa carne, a lei é como uma chicotada em uma mula ociosa e obstinada, uma chicotada que a faz animar-se, levantar-se e dispor-se ao trabalho".
Na última edição das Institutas (1559), Calvino é mais enfático a respeito de como os crentes se beneficiam da lei. Primeiramente, ele diz: "Este é o melhor instrumento para os crentes aprenderem mais completamente, a cada dia, a natureza da vontade do Senhor, a qual eles aspiram, e para confirmá-Los no entendimento dessa vontade". Em segundo, a lei faz o servo de Deus, "por meio de meditação freqüente, ser despertado à obediência, ser fortalecido na lei e restaurado de um caminho de transgressão". Calvino conclui que os santos devem prosseguir desta maneira, "pois o que seria menos amável do que a lei, com importunações e ameaças, atribular as almas com temor e as afligir com pavor?"
O ponto de vista que considera a lei primariamente como um guia que estimula o crente a apegar-se a Deus e a obedecer-Lhe ilustra outra instância em que Calvino difere de Lutero. Para Lutero, a lei é primariamente negativa. Está ligada ao pecado, à morte e ao diabo. O interesse predominante de Lutero é o segundo uso da lei, o uso convencedor ― mesmo quando ele considerava o papel da lei na santificação. Por contraste, Calvino entendia a lei como uma expressão positiva da vontade de Deus. Como disse John Hesselink: "O ponto de vista de Calvino podia ser chamado de deuteronômico, porque ele entendia que o amor e a lei não são contrários, e sim correlatos". Para Calvino, o crente segue a vontade de Deus, não motivado por obediência obrigatória, e sim por obediência agradecida. Sob a tutela do Espírito, a lei produz gratidão no crente; e esta conduz à obediência amorosa e à aversão ao pecado. Em outras palavras, para Lutero o propósito primordial da lei era ajudar o crente a reconhecer e confrontar o pecado. Para Calvino, o propósito primário da lei era levar o crente a servir a Deus motivado por amor.
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