Aguardem para breve o vídeo do programa Academia em Debate onde entrevistei Dr. Karl Heinz, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica. Enquanto isto, ele gentilmente permitiu que a entrevista viesse de forma escrita aqui para o blog.
Dr. Karl Heinz é engenheiro de eletrônica, graduado e pós-graduado (mestrado) pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Obteve seu doutorado em engenharia elétrica pela Escola Politécnica Federal de Zurique, na Suíça. Atualmente é professor no ITA. Sua área de especialidade chama-se Sistemas e Controle, a parte da engenharia diretamente relacionada à automação. Ele é membro da Igreja Batista em São José dos Campos.
É autor do blog Fé e Ciência, onde trata da relação entre estas duas realidades.
Segue abaixo a entrevista.
Augustus - O senhor é professor numa das escolas de tecnologia mais respeitadas do país, onde certamente os métodos científicos são seguidos com rigor. Ao mesmo tempo, o senhor é um cristão, que professa acreditar nos relatos da Bíblia. Existe alguma coisa na ciência que o obrigaria a desacreditar na Bíblia?
Karl - É quase o contrário: há coisas na Bíblia que me ajudam a confiar no método científico como uma ferramenta útil. Entre outras coisas, a Bíblia nos revela que Deus é consistente em seu governo da criação, e não cheio de caprichos (por exemplo em Romanos 1.20, “Pois os seus atributos invisíveis, o seu eterno poder e divindade, são claramente vistos desde a criação do mundo, sendo percebidos mediante as coisas criadas, de modo que eles são inescusáveis.”) Assim, de antemão espero descobrir padrões regulares no estudo da natureza, e é a isso que se propõe o método científico.
Augustus - Por que algumas pessoas insistem que há uma incompatibilidade radical entre a fé cristã e a ciência moderna?
Karl - Porque tais pessoas não possuem conceitos consistentes de ciência e fé (por exemplo confundem fé, religião e teologia, ou confundem ciência com plausibilidade), ou possuem motivos ideológicos para dogmatizar uma incompatibilidade entre fé cristã e ciência, que de fato não existe.
Augustus - Poderia dar uma definição de ciência? E dizer por que ela não conflita com a fé cristã de que há um Deus que criou todas as coisas?
Karl - Ciência é o conhecimento ou um sistema de conhecimentos que abarca verdades gerais ou a operação de leis gerais identificadas e testadas através do método científico. O método científico é um conjunto de regras básicas que fazem uso da razão para juntar evidências observáveis, empíricas e mensuráveis.
Embora procedimentos variem de uma área da ciência para outra, é possível determinar certos elementos que diferenciam o método científico de outros métodos. Primeiramente o cientista propõe hipóteses para explicar certo fenômeno ou observação de interesse. Baseado em suas hipóteses, o cientista faz previsões e então desenvolve experimentos e verificações para testar suas previsões. Previsões não confirmadas levam à rejeição das hipóteses. Hipóteses não rejeitadas eventualmente podem ser consolidadas em teorias. Toda hipótese ou teoria deve necessariamente permitir a formulação de previsões e permanece constantemente sujeita a novos testes, podendo ser refutada à luz de nova informação experimental. Todo o processo precisa ser objetivo, para que o cientista seja imparcial na interpretação dos resultados.
Outra expectativa básica do método científico é que todo o procedimento precisa ser documentado, tanto os dados quanto os procedimentos, para que outros cientistas possam analisá-los e reproduzi-los. Cientistas são fabricantes de mapas do mundo físico. Nenhum mapa nos diz tudo o que poderia ser dito sobre um terreno particular, mas numa determinada escala pode representar a estrutura existente com boa fidelidade. No sentido de uma verosimilitude crescente, de aproximações cada vez melhores da verdade sobre a matéria, a ciência nos proporciona um domínio cada vez mais firme da realidade material.
Retorno aos motivos para um “não-conflito” entre fé cristã e ciência, citando um motivo apenas. Como dito anteriormente, a Bíblia nos revela que o Criador é consistente em seu governo da criação. Portanto de antemão espero descobrir padrões regulares no estudo da natureza, ao que se propõe o método científico.
Augustus - Existem provas científicas da existência de Deus?
Karl - Não. Mas existem evidências científicas que apontam para a existência de um Criador. Várias dessas evidências motivaram a Teoria do Design Inteligente. Adicionalmente, evidências históricas, argumentos filosóficos e teológicos mostram ser mais razoável admitir a existência de Deus do que negá-la.
Augustus - As estatísticas nos dizem que mais 90 por cento da população brasileira crê em Deus e que apenas um mínimo é ateu. Mas quando a pesquisa é feita no âmbito da academia, a situação muda – a maioria dos cientistas afirma ser ateu ou agnóstico. Por que isto?
Karl - Uma grande parte do atual ceticismo, ateísmo e agnosticismo na academia deve-se ao espaço que damos a intelectuais impulsivos, que – em muitas ocasiões – deveriam pesquisar mais e falar menos. Como acadêmicos, precisamos ser críticos e pragmáticos para não aceitar discursos ideológicos. Deixe-me citar um exemplo. Em 1888 Nietzsche anotou a frase “Quanto mais próximo se está da ciência, maior é o crime de ser cristão,” num texto com o título Das Gesetz wider das Christenthum. Toda sua conduta e seu ensino transpiravam tal noção. O sórdido da frase é que ela foi escrita poucos anos depois que os cristãos Joule, Maxwell e Pasteur deram suas monumentais contribuições à ciência.
Hoje, na academia, a muitos parece adequado optar pela adoção simultânea da ideologia anticristã de Nietzsche e da ciência dos cristãos Joule, Maxwell e Pasteur, a quem Nietzsche - pela generalidade da sua frase – classifica de “criminosos”. Essa opção é essencialmente cultural e, na minha opinião, merecedora de reconsideração crítica.
Augustus - Entre os fundadores da moderna ciência há muitos pesquisadores que eram cristãos convictos, criacionistas – por que este fato é omitido quando o trabalho deles é mencionado em sala de aula?
Permita-me propor uma pequena reformulação na parte inicial da pergunta: não foram “muitos” cristãos convictos entre os fundadores da ciência moderna; foram todos, com poucas possíveis exceções, das quais não lembro uma sequer...
A menção à fé de cristãos que atuaram como cientistas é omitida em sala de aula por um de dois motivos: (a) o professor não tem a mínima ideia de que aqueles cientistas foram cristãos; ou (b) o professor é da opinião de que a fé cristã daqueles cientistas não teve relação alguma com a ciência que praticavam, o que em muitos casos – talvez na maioria dos casos – está em total desacordo com o entendimento dos próprios cientistas. Nos casos de Kepler, Joule e Maxwell, para citar 3 nomes apenas, a motivação para fazer ciência estava intimamente ligada à sua fé cristã. Mas a fé cristã não tem impacto somente na motivação para se fazer ciência: o respeito à vida humana, à integridade física e emocional de pessoas envolvidas na pesquisa, preocupação com os animais e com o meio ambiente, etc. são preocupações normais p/ um cientista de fé cristã.
Um cientista bastante conhecido na Europa, que enfatizou a importância da fé cristã para que se pratique uma ciência que sirva à humanidade e não prejudique à natureza foi Max Thürkauf, químico que recebeu o prêmio Ruzicka de Química, em 1963.
Augustus - Muitos jovens cristãos acabam perdendo a fé e abandonando o cristianismo quando entram no ambiente do ensino superior. Quais seriam as causas, na sua opinião?
Karl - O jovem cristão muitas vezes não está preparado para ter sua fé questionada. Além disso, muitas vezes, sucumbe ao “efeito rebanhão” (fazer, dizer e acreditar o que todo mundo à sua volta acredita) e/ou à “síndrome da admiração dos semi-deuses” (aceitar sem reflexão crítica o que professores afirmam). Nas igrejas os jovens precisam ser ensinados a expor, perguntar, debater, questionar e defender suas opiniões.
Augustus - Atualmente há um movimento crescente dentro da academia liderado por pesquisadores cristãos e não cristãos que questionam a afirmação do darwinismo naturalista de que a vida em toda a sua complexidade é decorrente de mutações e adaptações genéticas que aconteceram meramente por acaso e que o propósito que se percebe na natureza é somente aparente. É possível para um cientista cristão que crê no Deus da Bíblia concordar que o acaso está por detrás da realidade?
Karl - Não vejo possibilidade de explicar a diversidade da vida com o acaso. Mas isto não decorre da minha fé no Deus da Bíblia. Cálculos de probabilidades feitos por diversos cientistas de renome deixam claro que em algum ponto de um (alegado) processo evolucionário seria necessário algo como um “direcionamento útil,” o que tornaria o processo “não-darwiniano”. Como cristão eu tenho certeza de que Deus tudo criou. Essa certeza é “pela fé”, exatamente como explicado na carta aos Hebreus, na Bíblia. Como engenheiro estou preocupado em trabalhar com a natureza e cuidar dela. Vejo grandes limitações para a investigação e articulação de uma compreensão abrangente das origens daquilo de que nós (inclusive nossa capacidade explicativa) somos parte integrante. A teoria de sistemas não suporta expectativas de que esse tipo de empreitada dê certo. Essa é a principal razão para que eu não me dedique a conjecturas sobre origens.
Augustus - Que conselhos o senhor daria a um jovem cristão que entra no ensino superior e especialmente na área das ciências exatas?
Karl - Acho importante que o jovem cristão conheça e leia sua Bíblia, pratique sua fé, mantenha contato com outros estudantes cristãos, leia bons livros e conheça a história dos grandes cientistas, inclusive daqueles com fé no Deus da Bíblia. (A todos os estudantes cristãos recomendo a leitura do livro “A mente cristã num mundo sem Deus”, de James Emery White; essa recomendação vale para estudantes de todas as áreas.)
Augustus - A ciência hoje está em guerra com a religião?
Karl - Ciência natural não está em guerra com a fé cristã; a segunda favoreceu o surgimento da primeira. Como disse Max Planck, a prova mais imediata da compatibilidade entre fé cristã e ciência natural, mesmo sob análise detalhada e crítica, é o fato histórico de que justamente os maiores cientistas de todos os tempos, homens como Kepler, Newton, Leibniz, foram cristãos. Mas alguns cientistas e alguns teólogos estiveram em conflito em várias ocasiões ao longo da história por motivos que precisam ser estudados e entendidos, para que aprendamos as lições pertinentes.
Augustus - A ciência elimina ou corrobora a fé em Deus?
Karl - Teólogos de Alexandria (séc. IV e V) enfatizaram: (a) a unidade racional do universo e sua criação do nada por Deus; (b) a inteligibilidade do universo para a mente humana; (c) a liberdade contingente do universo. Essa concepção alexandrina favoreceu tanto o entendimento e usufruto da obra de Cristo quanto o desenvolvimento e uso do método científico. Grosseteste e Roger Bacon, que eu considero os primeiros cientistas (no sentido de usarem o método experimental) tinham o mesmo entendimento dos alexandrinos. O teólogo T. F. Torrance argumenta que o mesmo valeu para outros cientistas, como por exemplo Maxwell. Nesse contexto, entendo que a ciência, como bom fruto da dedicação intelectual e prática desses cristãos, acaba corroborando sua fé.
Augustus - Como é possível eliminar a tensão entre relatos científicos e religiosos sobre a origem do universo e da vida?
Karl - Entendo que há tensão entre interpretações teológicas específicas das Escrituras e interpretações e extrapolações de observações por cientistas. Teólogos e cientistas devem continuar trabalhando com dedicação, buscando sempre um entendimento compatível com a realidade.
Augustus - Para fazer ciência é necessário supor que o universo e a natureza são inteligíveis para a mente humana. Quais são as pressuposições metafísicas e epistemológicas que justificam a atividade científica?
Karl - Abaixo listo exemplos de crenças filosóficas que encorajam a pesquisa científica:
- Eventos no mundo natural tipicamente tem causas (imediatas) no mundo natural.
- O tempo é “linear”.
- Causas e efeitos no mundo natural têm alguma regularidade no espaço e tempo.
- Causas e efeitos podem ser – ao menos em parte – racionalmente compreendidas.
- Os constituinte e comportamentos naturais fundamentais não podem ser deduzidos pela lógica a partir de princípios fundamentais. Precisamos utilizar observações e experimentos para aumentar nossa lógica e intuição.
- Estudar a natureza da forma indicada no item anterior é um investimento válido de tempo e talento.
Augustus - O universo e a vida são auto-existentes, auto-suficientes, auto-organizados, ou estão fundados numa realidade que transcende o nexo espaço-tempo-matéria-energia?
Karl - A história mostra que a quebra (pelos teólogos alexandrinos) da noção Aristotélica da eternidade do mundo foi seminal para o surgimento do método científico. Hoje a Física relata evidências que apontam para um início para o universo. Decido-me pelo entendimento cristão de que tudo que existe está fundado numa realidade que transcende o nexo espaço-tempo-matéria-energia; vejo dificuldades para quem prefere a outra opção.
Augustus - Há limites sobre o que a ciência pode nos dizer para explicar a origem e a realidade do universo e da vida?
Karl - Há limites. Eu já indiquei minha “desconfiança” sobre o uso do método científico para encontrar uma explicação abrangente acerca da origem do homem. Louis Neel, Nobel de Física de 1970, disse que a busca do cientista por uma explicação abrangente da sua origem equivaleria à reconstrução da história do automóvel por um dos pistões de um motor automotivo.
Augustus - Sendo as teorias e os modelos científicos meros construtos humanos, com limites heurísticos, passíveis de revisão e até o descarte ao serem submetidas ao contexto de justificação teórica, as afirmações dos cientistas sobre a origem e evolução do universo e da vida não deveriam ser menos assertivas?
Karl - Sim, definitivamente. Veja só esta declaração do Prof. Franz M. Wuketits (professor das Univ. Viena e Graz): “Nós pressupomos a correção de princípio da teoria da evolução biológica, pressupomos que a teoria da evolução possui validade universal.” Pressuposições desse tipo são incompatíveis com ciência.
Augustus - Hoje a ciência está fundada no materialismo reducionista. Os seres vivos, especialmente os humanos, e o resto da natureza, são o resultado apenas de matéria e energia?
Karl - A assertiva antes da pergunta não é verdadeira. A ciência está fundada no método científico e não no materialismo reducionista. Que o ser humano é resultado apenas de matéria e energia pode ser opinião de muitos, mas é uma opinião que esbarra em toda a ordem de problemas na discussão de ética, estética, emoções, consciência, etc.
Augustus - Esse materialismo reducionista ajuda ou atrapalha o avanço da boa ciência?
Karl - O materialismo reducionista atrapalha a boa ciência, entre outras coisas, pelos problemas éticos que provoca. O Prof. Max Thürkauf, a quem já mencionei, deixou claro que o materialismo precisa ser responsabilizado por muitas catástrofes nucleares e ecológicas que presenciamos no século XX. Thürkauf disse que, se quisermos uma ciência que sirva ao homem, o cientista precisa “orar e trabalhar”.
Augustus - Ideias, até as ideias científicas, têm consequências. Como conciliar a visão religiosa do ser humano ter lugar diferenciado na natureza e a visão darwinista que o reduz ao nível dos demais animais?
Karl - Não vejo possibilidade de conciliação.
Augustus - Se Deus não existe, tudo é possível (Dostoievski). Se a ciência na sua limitação heurística não pode falar sobre valores, por que os cientistas rejeitam a moralidade derivada das Sagradas Escrituras, e desvalorizam o ser humano – imago Dei supostamente baseados na ciência?
Karl - A rejeição mencionada na pergunta ocorre por conveniência. O fenômeno já era explicado por Pascal: “A vontade, que prefere um aspecto a outro, afasta a mente de considerar as qualidades daquilo que não gosta de ver.” “O coração tem razões que a própria razão desconhece.”
Augustus - Os atuais avanços em diversas áreas científicas estão fortalecendo cada vez mais os relatos de criação das religiões monoteístas, mas a comunidade científica não aborda essas questões. Seria temor da falência do materialismo científico e que Deus retorne às universidades como uma ideia filosófica e cientificamente plausível?
Karl - Sim, acho que este temor existe em parte da academia. Porém fé monoteísta não resulta da interpretações científicas. Não é este o caminho a seguir. Em particular, a fé cristã tem uma natureza “a priorística” na medida em que pressupõe uma noção de Deus. Nesse contexto, algo como uma teologia natural pode ajudar um pouco. Acho que Romanos 1.20 legitima tal percepção.
Pessoalmente também considero interessantes argumentos filosóficos acerca da existência de Deus. Mas, o que é realmente importante (e independente de se crer em Deus ou não), é nos ocuparmos com a pessoa de Jesus, cuja obra e ministério estão descritos de forma confiável no Novo Testamento. Seus relatos nos obrigam a uma tomada de posição ou à ignorância deliberada, que seria incompatível com qualquer pretensão de seriedade. É ocupação com história... Além disso, fé cristã resulta em realidade observável na própria vida. A partir dela, se estabelece uma dinâmica do conhecimento de Deus, semelhante à dinâmica do conhecimento científico.
Acho muito útil a explicação de T.F. Torrance sobre a estratificação do conhecimento de Deus, para entender um pouco melhor a semelhança que existe entre conhecimento científico e conhecimento teológico cristão.