UM POVO CULTURALMENTE DOMINADO, COM AUTO-ESTIMA BAIXA,
ACREDITA QUE “SER BOM É SER COMO O DOMINADOR”. NÃO
PERCEBE QUE OS MALES QUE O AFLIGEM SÃO CONSEQUÊNCIA DESSA
DOMINAÇÃO E NÃO DE SUA PSEUDO-INFERIORIDADE. RESISTIR AO
COLONIALISMO E CONSTRUIR UMA IDENTIDADE CULTURAL PRÓPRIA
E POSITIVA É CONDIÇÃO INDISPENSÁVEL PARA O SEU
DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL.
Como qualquer outro povo, o brasileiro também tem sua maneira característica de ser e viver, seu modo original de resolver problemas, estabelecer regras de convivência, transmitir valores, exprimir desejos etc. Tem, enfim, sua própria cultura: a cultura brasileira.
É ela que faz com que reconheçamos um outro brasileiro em qualquer lugar e brasileiros nos sintamos, mesmo entre pessoas ou em locais que não o são. Da mesma forma, por causa dessa cultura, constatamos facilmente quem é estrangeiro em nosso meio. Em outras palavras, temos uma identidade cultural.
A cultura não é, porém, uma coisa imóvel, acabada. Como ela se faz na prática coletiva, está eternamente se transformando e criando novas possibilidades de ser.
Quando falamos em cultura brasileira, não estamos nos limitando a pensar em coisas como samba, carnaval, feijoada, caipirinha e “jeitinho” para resolver problemas, pois são aspectos usados muito mais para compor sua caricatura, ou seja, a cultura brasileira “tipo exportação”, para consumo dos turistas.
Não estamos nos referindo também a algum modelo cristalizado, produzido pela síntese do encontro do português, africano e índio em nosso passado, mesmo porque esse encontro se produziu em momentos, espaços e situações diferentes durante o processo em que se formou nossa nação.
Além disso, nos séculos XIX e XX, recebemos influências dos franceses e ingleses, dos imigrantes europeus, árabes e japoneses e, a partir da Segunda Guerra Mundial, dos “enlatados” norte-americanos.
É natural que desses encontros e das convivências, resistências e dominações deles decorrentes tenham surgido formas de expressão cultural que interferiram no significado e no sentimento de brasilidade.
Por ser o Brasil também uma “terra de contrastes” não temos, igualmente, uma cultura homogênea em todo o território nacional.
Por isso, como diz Renato Silveira em seu artigo “Uma arte genuína nacional e popular”, não devemos, com o objetivo de nos defender da cultura enlatada estrangeira, levar a nossa própria cultura a um enlatamento geral, partindo de uma visão conservadora e de um modelo-padrão de nossa nacionalidade.
Somos um povo colonizado e neocolonizado e evidentemente expressamos isso, embora o façamos de maneiras diferentes, segundo nossa própria postura diante do fato.
O processo de dominação pode despertar um sentimento de inferioridade e autodesprezo e, consequentemente, o desejo de ser diferente do que somos, porque acreditamos que “ser bom é parecer com o invasor”.
Um povo que resiste ao domínio, ao contrário, reflete sobre ele, problematiza e questiona o processo de invasão, a ele contrapondo uma identidade cultural positiva que lhe propicia o reconhecimento dos seus verdadeiros interesses, potencialidades e valores nacionais. Esse povo se reconhece então como “o outro”, ele mesmo, diferente, mas não inferior ao dominador.
A resistência ao colonialismo implica a não aceitação da imposição de valores estrangeiros em detrimento dos nacionais, mas não deve jamais estimular atitudes de recusa diante de outras influências culturais.
Tanto mais rica é uma cultura quanto mais contatos teve e mais influências recebeu. Se cada povo fosse inventar e descobrir por si mesmo todos os elementos de que se utiliza, necessitaria para isso de um tempo muito maior do que o representado pela história da humanidade. É por isso que as denúncias feitas neste livro se dirigiram não à influência mas à hegemonia e, em algumas situações, ao exclusivismo do modelo cultural norte-americano e aos seus objetivos.
Ultimamente tem-se falado muito no surgimento de uma civilização mundial como consequência da internacionalização da economia e do desenvolvimento tecnológico nos campos da comunicação e da informática. Estaríamos, pois, assistindo à emergência de uma cultura planetária e de um novo personagem histórico: o cidadão do mundo.
Da maneira como se fala, esse fato por si só já invalidaria qualquer tentativa de preservação de identidades nacionais. Essa civilização entretanto não seria mais do que a americanização da cultura em âmbito internacional e a globalização, mais uma etapa da invasão dos padrões e valores do american way of life em todos os cantos do planeta, ainda que efetivada por produtos made in outros lugares que não os USA, como, por exemplo, Taiwan, Hong Kong, Coreia e Japão, só para citar alguns.
Essa identificação da “nova cultura ou civilização mundial” com a cultura norte-americana não esconde certa tendenciosidade ao considerar essa última como a mais “cumulativa e rica”, legitimando-se assim sua hegemonia sobre as demais. Está ligada também a uma concepção linear e evolucionista da história,
segundo a qual todos os povos deveriam caminhar em direção a um grau mais elevado de desenvolvimento, seguindo as pegadas dos países capitalistas centrais.
Na realidade, porém, as sociedades caminham em sentidos, ritmos e com objetivos próprios e diferentes, nem superiores nem inferiores umas às outras. Segundo Claude Lévi-Strauss em Raça e história, vistas sob outros aspectos que não o do avanço tecnológico, por exemplo, algumas culturas, por nós consideradas estagnadas, se revelariam mais bem equipadas até do que as do chamado mundo ocidental. Por exemplo, a dos esquimós e a dos beduínos, na aptidão para vencer meios geográficos hostis; as orientais, como a da Índia e do Tibete, com relação aos sistemas filosófico e religioso, e no conhecimento das relações entre corpo e mente.
Impressionados com o domínio da cultura norte-americana sobre diversos países, os adeptos da “civilização mundial” parecem se esquecer da existência de um grande número de outros povos que não sofreram, ou estão resisitindo até hoje ou, ainda, que já se libertaram dessa dominação.
Além disso, a realidade dos fatos está constantemente a desmentir a necessidade de se passar sempre por determinados estágios culturais e a possibilidade de se chegar por imitação ao estágio alcançado por uma determinada nação.
No caso brasileiro, em particular, a história tem mostrado que a adoção do modelo norte-americano nos tem distanciado cada vez mais do modelo de desenvolvimento econômico acompanhado de desenvolvimento social e os fatos indicam, ao contrário, que o que é bom para os USA muitas vezes não tem sido utilizado a nosso favor e, sim, contra nós.
Por fim, vejamos como nós, brasileiros, com todo esse passado de “colônia cultural”, chegamos ao século XXI.
Enquanto uma parcela insignificante da população tem acesso aos bens importados ou aqui produzidos pelo capitalismo internacional, milhões de brasileiros têm vivido em absoluta ou quase absoluta miséria, recebendo, no entanto, os mesmos estímulos desencadeadores de desejos da propaganda característica da sociedade de consumo.
O que se encontra à venda no mercado interno é abocanhado em sua maior parte pela chamada classe A; a pequena parcela da população composta dos brasileiros mais ricos (5%) concentra em suas mãos uma renda quase equivalente à da imensa parcela formada pelos brasileiros mais pobres. O salário mínimo é sempre menor do que o mínimo necessário para uma vida digna, e o desemprego é a maior ameaça à segurança e paz dos trabalhadores.
Milhões de crianças e adolescentes carentes vivem em pleno abandono nas nossas principais cidades e, quando cometem alguma infração, são confinados em instituições que deveriam protegê-los mas, ao contrário, só lhes provocam mais amargura, frustração e explosões de violência. Ainda temos entre nós milhões de analfabetos, alguns na faixa etária em que deveriam estar frequentando o ensino básico.
Nossos dados estatísticos referentes à subnutrição
, mortalidade infantil, falta de acompanhamento das gestantes durante a gravidez e o parto e às condições sanitárias dos bairros onde vivem as populações mais pobres nos colocam entre os países com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
Chegamos ao final do século XX ocupando o 79.º lugar, numa lista de 174. Vínhamos atrás do Chile, Uruguai, Argentina, Cuba, Equador, Venezuela, Cazaquistão, Suriname e Arábia Saudita.
Como o escritor Eduardo Galeano afirmou em As veias abertas da América Latina, nosso subdesenvolvimento não seria uma etapa que precede o desenvolvimento, mas consequência
da ação exercida pelas potências imperialistas e condição mesma da manutenção de suas riquezas.
Segundo ele informa, em 1968, antes, portanto, do “milagre econômico” que acabaria por entregar o Brasil às multinacionais, a desnacionalização de nossa economia chegava a tal ponto que os estrangeiros, dos quais metade eram norte-americanos, detinham 82% dos nossos transportes marítimos, 67% dos aéreos externos, 100% da produção de veículos motorizados e de pneumáticos, 80% da indústria farmacêutica, 50% da indústria química, 59% da produção de máquinas, 90% da produção de cimento etc.
A transfusão de capitais externos para nossa economia era, contudo, cinco vezes menor do que a “hemorragia” causada pela remessa de lucros, juros, pagamento de licenças, assistência técnica etc. às matrizes das multinacionais.
A partir desse processo sempre crescente de descapitalização, o Brasil se veria obrigado a apelar constantemente para organismos financeiros internacionais, controlados em grande parte pelos USA, tais como FMI, BID, AIO, Eximbank etc., que imporiam ao Brasil, como condição para o empréstimo, a política de arrocho salarial e de desvalorização da moeda, a não destinação dos créditos à produção de artigos que concorram com os norte-americanos ou que sejam vendidos a países cuja economia os USA desejam boicotar, além de orientarem esses recursos segundo interesses diretos desse país.
Assim, grande parte desses empréstimos tem sido aplicada nas subsidiárias das multinacionais, em obras de infra-estrutura que favoreçam a sua instalação e a circulação de suas mercadorias, ou no financiamento de compras de produtos norteamericanos.
No que se refere à “transferência de tecnologia”, quando importamos know-how (conhecimento especial) estamos simplesmente obtendo uma licença ou autorização de uso da parte daquele que, na verdade, continua sendo o único detentor do saber tecnológico ou científico. Tanto é que no caso de introduzirmos alguns aperfeiçoamentos a esse saber, eles passam a ser propriedade do licenciador (exportador).
Os contratos de “transferência” em geral estabelecem não só um preço fixo pela licença concedida como também uma porcentagem sobre a venda dos produtos decorrentes da sua utilização e ainda a participação acionária do exportador no empreendimento. Não é raro que sejam impostas restrições de vendas a determinadas regiões e estabelecidos compromissos de compra de matéria-prima e componentes do licenciador.
É bom relembrar que muito da tecnologia exportada comumente já está superada no país de origem, embora seus preços de venda sejam sempre muito atuais.
Países desenvolvidos também importam know-how, mas gastam muito menos nisso do que investem em desenvolvimento de tecnologia nacional. Na América Latina, porém, esses investimentos são muitas vezes menores do que nos USA, por exemplo.
Condições bastante desiguais caracterizam também as relações comerciais do Brasil com os norte-americanos. O que importamos custa sempre mais e o que exportamos sempre menos do que os preços do mercado internacional, e, enquanto damos aos produtos dos USA tratamento preferencial em nossas alfândegas, os nossos encontram barreira naquele país.
Não é nada difícil perceber a ligação entre nossa miséria e a associação de interesses da nossa classe dominante com o imperialismo norte-americano. É a seu serviço que estão os enlatados culturais consumidos por nós e os meios de comunicação de massa que os veiculam e que ocultam informações que possam colocar em questão a validade do sistema capitalista e revelar os esquemas de dominação do imperialismo.
Por isso, não é raro que no Brasil se atribua a pobreza à corrupção política, à má escolha dos governantes, ao conformismo da população e a uma suposta incompetência do brasileiro para gerir o destino da nação. Na verdade, o que é mera consequência ou agravante passa a ser visto como causa dos problemas e desigualdades sociais.
Conforme dados apresentados pelo historiador Chico Alencar, em 1999, no Brasil havia apenas 4 milhões de internautas, ao mesmo tempo que, em média, 90 milhões de brasileiros assistiam à TV diariamente, menos de 20 milhões tinham o costume de pelo menos folhear jornais e menos de 10 milhões o hábito de ler livros sem ser por obrigação. Enquanto nos USA eram produzidos anualmente 11 livros per capita, a média em nosso país era de 2,4, incluindo nesse total os livros didáticos.
Nessas condições, evidentemente fica muito difícil desenvolver a consciência de que temos de defender o que é nosso. Contudo, e felizmente, difícil não significa impossível.
(Júlia Falivene Alves