2015/04/09

O perfeito idiota de classe média brasileiro


O perfeito idiota de classe média brasileiro

A meca do PICMB
A meca do PICMB
Ele não faz trabalhos domésticos. Não tem gosto nem respeito por trabalhos manuais. Se puder, atrapalha o trabalho de quem pega no pesado. Aprendi isso em criança: só enfia o pé na lama com gosto quem nunca teve o desgosto de ir para o tanque na área de serviço, depois, esfregar o tênis ou a chuteira debaixo de água fria. Só deixa um resto de bebida secar no fundo de um copo quem nunca teve que fazer o malabarismo de meter a mão lá dentro com uma esponja, com a barriga encostada na pia, para tentar lavá-lo.
Trata-se de uma tradição lusitana, ibérica, que vem sendo reproduzida aqui na colônia desde os tempos em que os negros carregavam em barris, nas costas, a toilete dos seus proprietários, e eram chamados de “tigres” – porque os excrementos lhes caíam sobre as costas, formando listras que lembravam a pelagem do animal. O perfeito idiota de classe média brasileiro, ou PICMB, não ajuda em casa também por influência da mamãe, que nunca deixou que ele participasse das tarefas – nem mesmo por ou tirar uma mesa, nem mesmo arrumar a própria cama. Ele atira suas coisas pela casa, no chão, em qualquer lugar, e as deixa lá, pelo caminho. Não é com ele. Ele foi criado irresponsável e inconsequente. É o tipo de cara que pede um copo d’água deitado no sofá. E não faz nenhuma questão de mudar. O PICMB é um especialista em não fazer, em fazer de conta, em empurrar com a barriga, em se fazer de morto. Ele sabe que alguém fará por ele. Então ele se desenvolveu um sujeito preguiçoso. Folgado. Que se escora nos outros, não reconhece obrigações e que adora levar vantagem. Esse é o seu esporte predileto – transformar quem o cerca em seus otários particulares.
O tempo do perfeito idiota de classe média brasileiro vale mais que o das demais pessoas. É a mãe que fura a fila de carros no colégio dos filhos. É a moça que estaciona em vaga para deficientes ou para idosos no shopping. É o casal que atrasa uma hora num jantar com os amigos. A lei e as regras só valem para os outros. O PICMB não aceita restrições. Para ele, só privilégios e prerrogativas. Um direito divino – porque ele é melhor que todos os outros. É um adepto do vale tudo social, do cada um por si e do seja o que deus quiser. Ele só tem olhos para o próprio umbigo e os únicos interesses válidos são os seus.
O PICMB é o parâmetro de tudo. Quanto mais alguém for diferente dele, mais errado esse alguém estará. Ele tem preconceito contra pretos, pardos, pobres, nordestinos, baixos, gordos, gente do interior, gente que mora longe. E ele é sexista para caramba. Mesma lógica: quem não é da sua tribo, do seu quintal, é torto. E às vezes até quem é da tribo entra na moenda dos seus pré-julgamentos e da sua maledicência. A discriminação também é um jeito de você se tornar externo, e oposto, a um padrão que reconhece em si mas de que não gosta. É quando o narigudo se insurge contra narizes grandes. O PICMB adora isso.
O perfeito idiota de classe média brasileiro vai para Orlando sempre que pode. Seu templo, seu centro de peregrinação, é um outlet na Flórida. Acha a Europa chata. E a Ásia, um planeta esquisito com gente estranha e amarela que não lhe interessa. Há um tempo, o PICMB descobriu Nova York – para onde vai exclusivamente para comprar. Ficou meia hora dentro do Metropolitan, uma vez, mas achou aquilo aborrecido demais. Come pizza no Sbarro. Joga lixo no chão. Só anda de táxi – metrô, com a galera, nem em Manhattan. Nos anos 90, comprava camiseta no Hard Rock Cafe. Hoje virou um sacoleiro em lojas com Abercrombie & Fitch e Tommy Hillfiger. Depois de toda a farra, ainda troca cotoveladas no free shop para comprar uísque, perfume, chocolate e maquiagem. O PICMB é, sobretudo, um cara cafona. Usa roupas de polo sem saber o lado por onde se monta num cavalo. Nem sabe que aquelas roupas são de polo. Ou que polo é um esporte.
O PICMB adora pagar caro. Faz questão. Não apenas porque, para ele, caro é sinônimo de bom. Mas, principalmente, porque caro é sinônimo de “cheguei lá” e “eu posso” e “veja o quanto eu paguei nesse relógio ou nessa calça da Diesel”. Ele exibe marcas como penduricalhos numa árvore de natal. É assim que se mostra para os outros. Se pudesse, deixaria as etiquetas presas aos itens do vestuário e aos acessórios que carrega. O PICMB é jeca. É brega. Compra para se afirmar, para compensar o vazio e as frustrações, para se expressar de algum modo. O perfeito idiota de classe média brasileiro não se sente idiota pagando 4 000 reais por um console de vídeo game que custa 400 dólares lá fora. Nem acha um acinte pagar 100 000 reais por um carro que vale 25 000 dólares. Essa é a sua religião. Ele não se importa de ficar no vermelho – a preocupação com ter as contas em dias é para os fracos. Ele é o protótipo do novo rico burro. Do sujeito que acha que o bolso cheio pode compensar uma cabeça vazia.
O PICMB é cleptomaníaco. Sua obsessão por ter, e sua mania de locupletação material, lhe fazem roubar roupão de hotel e garrafinha de bebida do avião e amostra grátis de perfume em loja de departamento. Ele pega qualquer amostra de produto que esteja sendo ofertada numa degustação no supermercado. Mesmo que não goste daquilo. O PICMB adora boca livre e hotéis “all inclusive”. Ele adora camarote – quando ele consegue sentir o sangue azul fluindo em suas veias. Ele é a tradução perfeito do que é um pequeno burguês.
O perfeito idiota de classe média brasileiro entende Annita. Vibra com Latino. Seu mundo cabe dentro do imaginário do sertanejo romântico. Ele adora shows megaproduzidos, com pirotecnia, luzes e muita coreografia, cujos ingressos custem mais de 500 reais – mesmo que ele não conheça o artista. Ele não se importa de pagar uma taxa de conveniência escorchante para comprar esse ingresso da maneira mais barata para quem lhe vendeu – pela internet.
E o PICMB detesta ler. Comprou “50 Tons” para a mulher. E um livro de autoajuda para si mesmo. Mas agora que a novela está boa ficou difícil achar tempo para ler.

Segunda parte


O perfeito idiota de classe média brasileiro – Parte 2

A pobreza no Brasil não é uma circunstância, uma situação conjuntural a que todos estamos expostos – é uma condição estrutural que rotula e afasta milhões de pessoas, consideradas para sempre subcidadãs. O PICMB morre de medo disso. E adora rir disso.
A pobreza no Brasil não é uma circunstância, uma situação conjuntural a que todos estamos expostos – é uma condição estrutural que rotula e afasta milhões de pessoas, consideradas para sempre subcidadãs. O PICMB morre de medo disso. E adora rir disso.
O texto de maior sucesso nos cinco anos de vida do Manual viralizou semana passada – O perfeito idiota de classe média brasileiro.
O número de leituras foi de pouco mais de 1 000 (um belo número para os padrões do Manual) para quase 17 000 em uma semana. E com quase 250 comentários – que respondi um a um. Nada mal para um blog independente. O detalhe é que essa é a segunda curva de um texto que foi publicado originalmente em 9 dezembro. Impossível precisar o que detonou essa ignição ocorrida de repente, dois meses depois. Coisas da internet.
Acho que o texto tocou num ponto importante – um padrão de comportamento que transforma muitos de nós em seres com um cartão de crédito no bolso e nenhuma ideia na cabeça. Aterrissei essa atitude na classe média – porque é ali, nesse terreno largo, em que o poder aquisitivo nem sempre é construído par e passo com a instrução, que ela pode ser encontrada com mais clareza e fartura. Mas é claro que esse comportamento acomete pessoas em outras camadas sociais. Ele pode ser visto na aspiração dos pobres e também no descaso dos ricos brasileiros.
O PICMB se traduz numa pessoa mimada, indolente, incivilizada, pouco cidadã. Que se escuda atrás de marcas e de produtos caros – porque, de resto, tem pouca coisa a oferecer. É um praticante e uma vítima da reificação – o processo de coisificação das pessoas, dos sentimentos, dos relacionamentos. O PICMB é brega no uso do dinheiro. E cafona no que pensa e no que diz – porque não se preparou para exercer da melhor maneira as suas conquistas financeiras. Acha que não precisa fazê-lo. Ele está interessado em ter, não em ser. Ou: ele só considera que é na medida em que tem.
Há outros dois aspectos que ajudam bem a caracterizar o PICMB – que, perceba, é muito mais uma função do que uma estrutura, muito mais um software do que um hardware, muito mais um sistema ético do que um determinado grupo de pessoas.
O primeiro deles: o medo bizarro da classe média brasileira de parecer pobre.
E o modo mais direto de não parecer pobre, de afirmar ou de fingir riqueza, é pagar caro. A visão que nós temos de um cara rico, no Brasil, não é a de um cara que trabalha e que economiza – mas de alguém opulento e perdulário. Por isso os preços aumentam à nossa volta – e o PICMB acha bonito pagar por eles. Pagar menos é erodir valor. Pagar caro, ao contrário, deixa todo mundo ver que você não é pobre. O tipo de consumismo que nutrimos entre nós tem esse viés: as coisas tem que ser caras. O uso grosseiro de marcas famosas vem daí – elas não são nada além de uma sinalização pouco sutil para todos os outros de que você tem dinheiro para torrar naquilo. (Mesmo os produtos comprados em liquidações, nos outlets de Orlando, que lotamos com nossa voracidade vazia, não se despem dessa função, ao gritarem: “eu estive em Orlando, você não”. A exclusividade é uma forma de segregação social e econômica que nós adoramos praticar.) Não raro, o único valor de um produto é esse: ser caro. Ele nem é tão legal, mas você usa porque todo mundo sabe que ele custa os olhos da cara. Ninguém acha que você é um tremendo pato agindo desse jeito – todo mundo acha você que é bacana. Nós devotamos ao PICMB uma admiração (sempre banhada em veneno) que lhe faz vibrar por dentro.
O PICMB acha que reclamar dos preços, ou discuti-los, ou pechinchar, ou procurar pelas melhores ofertas, é coisa de pobre. E nós temos horror a isso – “pobrismo”. Trata-se, obviamente, de um trauma terceiro-mundista, de quem foi pobre por muito tempo, e de quem ainda convive muito de perto com a pobreza. Escandinavos, holandeses, belgas e suíços, por exemplo, não tem essa dicotomia instalada dentro de si. Por isso se dão ao luxo de dar mais valor ao seu dinheiro e de não enxergar sentido na ostentação. Nós, ao contrário, respiramos essa dicotomia. Nosso jeito de lidar com ela é ampliar, entre nós, o contraste entre quem tem e quem não tem, ao invés de tentar incluir todo mundo para que mais pessoas possam ter. Vivemos para mostrar. Para agredir o outro com aquilo que logramos adquirir. Por isso, para o PICMB, a regra é comprar sem olhar. Essa irresponsabilidade com o dinheiro, essa falta de amor à economia, nos define. Os americanos, para não irmos muito longe, respeitam muito cada dólar que tem na carteira. Por isso o dólar é valorizado. A valorização cambial de uma moeda começa na valorização que os usuários fazem dela individualmente, dentro do seu próprio bolso. Como os americanos, nós elegemos o dinheiro como um deus – só que um deus que precisa ser imolado diariamente no fio do cartão de crédito internacional com limite estourado.
Esse pudor de parecer mesquinho é o que permite que os estacionamentos e as sobremesas, para citar dois preços que inflacionaram barbaramente nos últimos anos, aumentem descaradamente numa cidade como São Paulo. A gente paga. Então a primeira hora do valet em qualquer lugar, de 8 ou 10 reais, passou, num par de anos, para 20 ou 25 reais. Porque a gente paga. Por isso um taça minúscula de qualquer coisa doce após uma refeição passou de 10 ou 12 reais, para 25 reais em qualquer restaurante bem posicionado na cidade. Porque a gente paga. A gente não reclama – porque regatear preço é coisa de pobre. Por isso o governo aumenta seus gastos e a nossa carga tributária todo ano e tudo bem: a gente continua pagando. As tungadas vem de todo lugar – do IPTU ao serviço de controle da emissão de gases do seu carro (uma piada de humor sombrio aplicada aos paulistanos todo ano). A gente paga. A gente assente. Enquanto isso nos separar daquelas pessoas que não podem pagar, continuaremos pagando – porque isso nos faz sentir bem.
O outro aspecto que ajuda a caracterizar o comportamento do PICMB é um individualismo atroz, que embute um total descaso pelo outro e que obstaculiza a construção de uma Nação com N maiúsculo sobre esse país com p minúsculo.
Trata-se de tentar sempre garantir privilégios individuais imediatos ao invés de crescer como sociedade a médio prazo. A magistrada que bloqueou recentemente, no bairro do Humaitá, no Rio, um trecho de calçada em frente à sua casa, para poder manobrar com o seu carro, é a cara desse Brasil. Somos um país de posseiros. O país da apropriação indébita. Ao invés da soma dos interesses privados gerarem o bem público – afinal, é do interesse comum, de cada um de nós, que seja bom para todos –, a gente parte para o cada um por si e para o quem pode mais chora menos. Assim não construímos sistemas – porque sistemas dependem de que cada parte funcione por si só mas também para o todo. A gente não liga para o todo – temos a ilusão de que se resolvermos o nosso está bom. (Enquanto eu estiver bem dentro do meu carro, que se exploda o metrô!) Adoramos prerrogativas, vantagens especiais, contarmos com mais direitos do que os outros. Somos fascinados por camarotes, por bocas livres, por crachás que deem acesso a lugares onde os outros não chegam. Eis o ponto: nada é mais distante, insignificante e sem valor para um brasileiro do que outro brasileiro. Daí a vida valer tão pouco por aqui. O outro não vale nada. Amarra o ladrão no poste e lincha. Problema dele, não meu. O PICMB cuida de si e dos seus – e cada um que cuide de si. Não existe solidariedade no Brasil. Nem o pensamento coletivo, o sentimento de conjunto. Somos um empilhamento mal combinado de milhões de indivíduos que só querem saber de si mesmos. O PICMB é um fruto e um arauto disso.
Daí utilizarmos o acostamento descaradamente. Trata-se de um espaço coletivo – que o PICMB transforma em espaço particular, à revelia dos demais. Daí a luz amarela do semáforo no Brasil ser um sinal para avançar, que ainda dá tempo – enquanto no Japão, por exemplo, é um sinal para parar, que não dá mais tempo. Nada traduz melhor nossa sanha por avançar sobre o outro, sobre o espaço do outro, sobre o tempo do outro. Parar no amarelo significaria oferecer a sua contribuição individual, em nome da coletividade, para que o sistema funcione para todos. Uma coisa que o PICMB prefere morrer antes a ter de fazer.
Por fim, um teste simples para identificar outras atitudes que definem o PICMB: liste as coisas que você teria que fazer se saísse do Brasil hoje para morar em Berlim ou em Toronto ou em Sidney. Lavar a própria roupa, arrumar a própria casa. Usar o transporte público. Respeitar a faixa de pedestres, tanto a pé quanto atrás de um volante. Esperar a sua vez. Compreender que as leis são feitas para todos, inclusive para você. Aceitar que todos os cidadãos tem os mesmos direitos e os mesmo deveres – não há cidadãos de primeira classe e excluídos. Não oferecer mimos que possam ser confundidos com propina. Não manter um caixa 2 que lhe permita burlar o fisco. Entender que a coisa pública é de todos – e não uma terra de ninguém à sua disposição para fincar o garfo. Ser honesto, ser justo, ser pontual. Se tudo isso lhe for intragável, não tenha dúvida: você está se transformando num PICMB. Reaja.
Por Adriano Silva

Do Magistrado Civil e a Igreja - Confissão de Fé de Westminster


Aqui deixamos uma vez mais a ordem da Confissão de Fé para considerar juntas certas seções da Confissão que são difíceis de considerar em relação umas com as outras. Estes capítulos e estas seções são: o capítulo XXIII, 3 e o capítulo XXXI, 1, 2. A dificuldade consiste em definir qual é o poder do magistrado civil com respeito aos assuntos eclesiásticos. A partir deste ponto, primeiro, procederemos discutindo as seções do capítulo XXIII que não são problemáticas; e segundo, as seções dos capítulos XXIII e XXXI que apresentam o problema e terceiro, as porções que ficaram do capítulo XXXI, ou seja, as seções 3, 4, e 5. 

1. Deus o supremo Senhor e Rei de todo o mundo, institui os magistrados civis, para estar abaixo dele e sobre o seu povo, para sua própria gloria e para o bem público; para cujo fim lhes deu autoridade da espada, para defender e estimulo dos bons, e para castigo dos maus.

2. É licito que os cristãos aceitem e desempenhem o oficio de magistrado quando para isso forem vocacionado por Ele. Na administração deste ofício os cristãos devem manter especialmente a piedade, a justiça e a paz de acordo com as leis saudáveis de cada estado. Para tal fim, podem legalmente a luz do NT, fazer guerra em ocasiões justas e necessárias.

3. [...]

4. O povo tem o dever de orar pelos magistrados, honrar suas pessoas, pagar tributos e outros direitos, obedecer aos seus mandamentos legítimos, e estar sujeitos a sua autoridade por causa de sua consciência. A infidelidade, ou a diferença de religião não invalida a justa e legítima autoridade do magistrado, nem exime do povo a devida obediência a ele, do qual as pessoas eclesiásticas não estão excluídas, e muito menos tem o papa poder de jurisdição alguma sobre os magistrados, sobre seus domínios, ou sobre algum de seu povo; e muito menos para priva-los de seu domínio, suas vidas, sejam porque os julguem que são hereges, ou por qualquer outro pretexto.

XXIII, 1,2,3

Estas seções da Confissão de Fé nos ensinam:

1) Que Deus estabeleceu o governo civil sobre a terra.
2) Que seu propósito e sua glória e o nosso bem.
3) Que nos deu os oficiais civis e o poder da espada.
4) Que os cristãos podem de forma lícita ter cargos civis e exercer o poder da espada em ocasiões necessárias e justas.
5) Que Deus requer que os cristãos exerçam o mandato, orem, se submetam aos que licitamente utilizam o seu cargo no governo civil.
6) Que esta responsabilidade não deixa de existir por causa das diferenças religiosas, e
7) Que o papa de Roma não tem nenhum direito sobre o poder civil.

A passagem clássica das Escrituras que trata do estabelecimento do governo civil é:

Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a devida condenação. Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem e terás louvor dela, visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência. Por esse motivo, também pagais tributos, porque são ministros de Deus, atendendo, constantemente, a este serviço. Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra” (Rm 13:1-7).

Nesta passagem clássica das Escrituras se estabelece os ensinos desta seção da Confissão. “Todos devem se sujeitar as autoridades publicas” disse o apóstolo. Sem dúvida se requer do cristão que se submetam aos que estão como autoridades pela vontade de Deus. “Porque não há autoridade que não proceda de Deus, e as autoridades que existem foram por ele instituídas.” A. A. Hodge bem disse: “alguns imaginam que o direito e a autoridade legítima do governo humano tem seu fundamento final na aprovação dos governados,” bem como “na vontade da maioria”, ou, em algum pacto social imaginário feito pelos antepassados da raça na origem da vida social. Mas as Escrituras nos ensinam que o governo civil vem de Deus, e que tem sua autoridade pela vontade de Deus, e assim aprovação dos governos. Isto implica claramente que o cristão deve considerar o governo de fato, de qualquer país particular no qual pode residir como jure. Nenhuma forma de governo civil está designada nas Escrituras. O cristão não tem a liberdade de obedecer ou não dependendo do tipo de governo que exista. “Os poderes que existem foram estabelecidos por Deus”, disse Paulo. E se referia ao governo totalitário do Império Romano. Se Paulo e Jesus ensinaram que deveriam se sujeitar a Cesar, é difícil pensar em algum tipo de governo civil que não deveria ser obedecido pelos cristãos em assuntos civis. A luz deste contexto do período apostólico (quando o governo civil era totalitário), não cremos que os cristãos tivessem o direito de apoiar, ou, de participar na derrota violenta de uma autoridade civil, ou, seja uma monarquia ou democracia (ver Rm 13:2, I Pd 2:13-14, Tt 3:1 etc). Se todo o governo de fato é estabelecido por Deus, e a resistência é uma resistência diante do mandato de Deus então, não existe nenhuma outra conclusão.

No entanto, afirmar que a autoridade civil é de origem divina não é dizer que a mesma não tenha limites. Toda a autoridade divinamente estabelecida, em assuntos humanos, está limitada pelo decreto divino. O magistrado civil é estabelecido por Deus como “ministro” o servo de Deus “para o bem”. A sua responsabilidade é levar a espada do poder físico como terror contra as obras do mal. A sua responsabilidade é como vingador que demonstra a ira de Deus sobre quem fez o mal. Enquanto o governo civil se contenta restringindo e castigando o crime e a violência, proteger o bem e castigar o mal, o cristão deve apoiar, orar e honrar por esse governo. Mas quando esse governo castiga aos retos e recompensa ao malfeitor, tornando-se agressivo militarista, é a responsabilidade do cristão resistir esse poder porque subverte o mandato de Deus. Em muitos casos é sem dúvida, difícil determinar precisamente quando, até que ponto um cristão deve resistir a um governo civil em particular. Não é nossa intenção fazer que esta decisão pareça fácil. Mas certos princípios são muito claros, e se aplicados corretamente, tornará possível para que o indivíduo tome a decisão correta em seu caso particular.

1. Devemos sempre obedecer aos “mandatos legítimos” de nosso governo. Em todas e cada uma das instâncias devemos estar “prontos a fazer toda boa obra” (Tt 3:1).

2. Sempre devemos obedecer a Deus antes que ao homem quando existe um conflito entre os dois. “É necessário obedecer a Deus antes que os homens” (At 5:29).

3. Podemos resistir, tanto ativa como passivamente, se for necessário, para obedecer a Deus. Quando uma autoridade civil se mostra um terror quanto às boas obras e não quanto o mal, cremos que os cristãos tem o direito de defender–se ativamente. Tanto a “sua vida como a sua propriedade” conforme determina a lei “Salmo 82:4, Provérbios 24:11-12, etc.”. Assim “o fim imediato para o qual Deus instituiu os magistrados é o bem público e o fim último a manifestação de sua própria glória.”

Mas, consideremos atentamente certos erros modernos que ganharam um amplo apoio, e que confunde a mente de muitos cristãos.

1. O primeiro que consideraremos é a intenção modernista de descontinuar a prática da pena de morte. Em nossa nação hoje em dia existe uma corrente cada vez mais forte a favor de abolir a pena de morte. E muitos grupos protestantes liberais aprovam esta mudança dizendo que não beneficia a sociedade, não reforma o criminoso nem reflete os ensinos humanitários do Novo Testamento. É dizer, por várias razões, que é muito popular hoje em dia negar ao governo o poder da espada para castigar o mal. Tal posição enquanto autoridade civil está ao menos completamente contra ao ensinamento bíblico. Não pensemos que se possa provar que a pena de morte não seja um benefício para a sociedade. Cremos que seja, embora a única razão seja que a Escritura declara que o cumprimento fiel da justiça é uma punição para o mal e um alento para o bem. Pode ser possível que a pena de morte não reforme o criminoso. Mas, também é possível que a falta de punição contra a maldade também reforme o criminoso. Mas estamos convencidos de que ela promove a maldade. Sobretudo, nos opomos à ideia de que o poder e a autoridade civil devam refletir as ideias modernas de ensino humanitário do “Novo Testamento”. A justiça não é mais “humanitária” no Novo Testamento que no Antigo Testamento. E a instituição do governo civil não foi estabelecida para ensinar o Novo Testamento: é para castigar o crime e proteger os que fazem o bem. Sem motivos duvidamos que o esquema dos liberais que promovem abolição da pena de morte seja “humanitária”. Cremos que muitos dos crimes da atualidade se devem ao fato de que existe demasiada preocupação não bíblica pelo malfeitor e bem pouca preocupação bíblica pelos justos. 

2. Outro ataque moderno contra a instituição do governo civil pode-se observar por aqueles que promovem a corrente pacifista. Os concílios da igreja modernista têm defendido tais coisas:

2.1. O completo desarmamento de nossa nação.
2.2. O desarmamento unilateral [ou seja, somente do cidadão de bem].
2.3. A negociação em vez da defesa armada ao serem confrontados com agressão criminosa. 
2.4. O reconhecimento dos que são agressores sem nenhum tipo de castigo justo.

A Confissão de Fé insiste que os magistrados civis (ainda que sejam pessoas cristãs) “podem legitimamente, conforme o Novo Testamento, fazer atualmente guerra em ocasiões justas e necessárias. Os que apoiam a política que basicamente exige que nosso governo nacional renuncie o poder da espada e renuncie os esforços para ser um punidor dos malfeitores, e que renuncie a execução de vingança sobre eles, pedem nada menos que destruição do mandato de Deus em Romanos 13:1-5. É precisamente porque “se opõem a autoridade” então “se rebelam contra o que Deus instituiu”. Este pecado deve ser denunciado como ele realmente é. É um pecado contra Deus, é um pecado contra o nosso governo.

A última parte da seção número 4 deste capítulo trata dos males históricos associados com a Igreja Católica Romana.

3. O primeiro destes males é que lhes outorga um status privilegiado aos oficiais da igreja em assuntos civis. Existem em alguns países que são dominados pela Igreja Romana nos quais os sacerdotes não podem ser julgados nas cortes civis por seus crimes. Existe talvez um pouco de humor nos relatos tradicionais da vergonha da polícia irlandesa quando se deu conta de que havia prendido um sacerdote por excesso de velocidade. No entanto, as Escrituras ensinam que os cristãos, sejam oficiais da igreja ou não, não devem se considerar acima do poder civil. Cremos que a Confissão de Fé concorda com a Escritura quando diz que “as pessoas eclesiásticas não estão excluídas desta autoridade”. E a infidelidade, ou diferença de religião entre os cidadãos cristãos e o governo civil “não invalida a justa e legítima autoridade do magistrado”.

4. O outro mal que outorga autoridade ao Papa de Roma. Este foi e continua sendo uma reivindicação do Pontífice Romano, ele insiste que exerce tanto a espada espiritual como a temporal do poder e a autoridade. “Segundo a posição ultramontana estritamente lógica, sendo toda nação, em todos seus membros, uma porção da igreja universal, a organização civil está compreendida dentro da igreja para certos fins subordinados para o grande fim para o qual existe a igreja e assim, portanto, finalmente responsável diante dela para execução da autoridade delegada. Quando enfim o Papa se coloca na condição de exigir a sua autoridade, pondo o reino debaixo de edito emitido aos súditos exigindo o seu voto de fidelidade (civil), e demonstrando aos soberanos, baseando-se na suposta heresia da insubordinação dos líderes civis no país”. (A A. Hodge, Ibid., p. 276). A Escritura anunciou o que a história demonstrou, ou seja, que tal usurpação resulta na perseguição aos verdadeiros crentes (Ap 13; 18:24).

Por G.I. Williamson

A obra de Deus na salvação

 A obra de Deus na salvação

1. Graça comum
Deus exerce graça comum para toda a humanidade, bem como a graça especial pela qual as pessoas chegam à salvação. Por meio dessa graça comum, o pecado é restringido, os seres humanos pecadores recebem bênçãos de Deus e são capacitados a fazer coisas boas. Essa graça comum provê um fundamento para a sociedade humana e capacita o trabalho nas artes e nas ciências. É o Espírito Santo que capacita esse trabalho nas artes e nas ciências; por conseguinte, o progresso cultural e a civilização humana são dons de Deus, que se tornam possíveis apesar da queda da humanidade no pecado.

2. A chamada e a eleição de Deus
Deus chama os homens a que se arrependam e creiam. Ninguém pode responder a essa chamada sem a obra do Espírito Santo. Ainda que muitos possam receber oralmente a mensagem ou lê-la diretamente na Bíblia ou indiretamente na literatura cristã, nem todos são escolhidos. Em vez de abandonar a raça humana em sua condição humana, Deus elegeu soberana e graciosamente alguns para a vida eterna. Somente aqueles cuja mente e coração são iluminados pelo Espírito Santo são capacitados a aceitar os dons prometidos de perdão dos pecados e aceitação com Deus.

3. A natureza da regeneração
Por meio da obra do Espírito Santo, alguém que antes era um pecador morto recebe vida de Deus; e a implantação dessa vida resulta em uma nova orientação para com Deus e sua justiça. O ensino da Escritura é que, sem essa mudança que produz santidade, ninguém verá a Deus. Ainda que essa obra regeneradora produza mudanças no caráter, os cristãos são pessoas singulares, pois, embora todos possuam o Espírito Santo, eles são todos diferentes. O que eles compartilham em comum é a implantação da nova vida; e isso significa que agora estão em união espiritual indissolúvel com Cristo. O Novo Testamento expressa isso dizendo que os cristãos estão “em Cristo”, ou seja, eles se tornam “herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo”. Porque estão unidos assim com Cristo, em quem estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento, os cristãos são completos n’Ele. Todos os cristãos crentes têm o Espírito de Cristo; e a união com Cristo também significa que eles estão em um relacionamento vital uns como os outros. Compartilham da salvação comum, têm alvos e aspirações comuns.

4. Os efeitos da regeneração
A obra de Deus na regeneração não precisa de repetição. Havendo sido justificado com Deus, o novo cristão demonstra essa mudança de status por uma mudança em sua condição espiritual. A conversão marca o começo consciente de uma nova vida, de modo que os novos crentes começam a viver de acordo com sua nova natureza, com as afeições fixadas nas coisas espirituais e eternas. No âmago da nova vida estão o arrependimento e a fé, os quais estão unidos como a expressão da conversão.

5. A fé
A graça de crer é um dom de Deus. Então, a fé é um ato de receber as bênçãos da salvação por meio da crença pessoal em, e compromisso com, Cristo, o Salvador. A fé é o instrumento pelo qual a revelação divina e todas as bênçãos prometidas são assimiladas, recebidas e desfrutadas. É uma convicção de que a mensagem da Bíblia é verdadeira e de que a apropriação pessoal dos méritos e da obra de Cristo é essencial. A verdadeira fé descansa em seu objeto, Jesus Cristo, que é recebido como Salvador; e, por um ato de entrega, a alma descansa somente nEle para a salvação.

6. A justificação
A justificação é o ato de Deus posterior à chamada eficaz realizada pelo Espírito Santo e a resposta consequente de arrependimento e fé da parte dos pecadores: “Aos que chamou, a esses também justificou”. Na justificação, Deus declara os pecadores justos perante Ele, considerando os seus pecados perdoados e reputando a justiça de Cristo como pertencente a eles. A justificação não é uma simulação da parte de Deus, afirmando que os pecadores são justos quando, de fato, eles são culpados. Para que a justificação seja real e consistente com a santidade de Deus, ele precisa ter uma base meritória. Tem de haver uma justiça real, que Deus reconhece em sua declaração de justificação. Os pecadores são justificados com base em uma justiça suprida por outrem, a justiça do Senhor Jesus Cristo, que é contada como pertencente a eles. Essa imputação da justiça de Cristo é fundamental à fé cristã.

7. A justiça de Cristo é a base de nossa justificação
A justiça de Cristo envolve sua vida de perfeita obediência a cada mandamento da lei de Deus e sua morte na cruz, pela qual Ele suportou a penalidade da ira de Deus devida aos pecados de todo o seu povo, uma obra selada por sua ressurreição triunfante. Os crentes compartilham agora do status de justos como Cristo, que satisfez todas as exigências da lei de Deus, em lugar e em favor deles. A base da justificação dos pecadores é unicamente a perfeita justiça de Cristo.
A harmonia entre Paulo e Tiago em seus ensinos sobre a justificação
Não há nenhum conflito entre o ensino de Paulo e o de Tiago no que concerne à justificação. Paulo escreve sobre a justificação como perdão e aceitação diante de Deus. Tiago insiste que a justificação é real e se mostrará em uma vida de obediência.

8. A adoção dos crentes em Cristo
A posição de Cristo como eterno Filho de Deus não-criado é única. No entanto, Ele não se envergonha de chamar seus irmãos àqueles que salvou. Esses filhos de Deus adotados são herdeiros da herança que Cristo obteve para eles, a plena medida das bênçãos da redenção. Por isso, eles são descritos como “herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo”.
Como filhos de Deus, os crentes compartilham de todas as bênçãos providas por Deus para a sua família. Como resultado do testemunho interno do Espírito Santo, eles reconhecem e se dirigem a Deus como Pai. Eles são objetos do amor de Deus, de sua compaixão, de seu cuidado pelas necessidades deles. Os filhos de Deus têm o privilégio de compartilhar dos sofrimentos de Cristo e de sua glorificação subsequente. Os filhos de Deus têm outro privilégio, que confirma a sua adoção: a experiência da disciplina paternal de Deus. Eles são assegurados de que Deus os “trata como filhos; pois que filho há que o pai não corrige?”. A unidade dos filhos de Deus em um corpo é também um privilégio a ser desfrutado e uma responsabilidade que exige amor e ministério mútuos.
As bênçãos plenas da adoção não serão experimentadas enquanto não houver o glorioso retorno do Senhor Jesus Cristo. A adoção tem uma dimensão presente, mas também uma dimensão escatológica, que é um elemento da esperança cristã. Portanto, “também nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo”. A adoção não será completa enquanto Cristo não der a seu povo novos corpos, na ressurreição, quando os crentes desfrutarão “a liberdade da glória dos filhos de Deus” juntamente com a criação renovada.

9. A obra do Espírito Santo em santificar
O Espírito Santo opera na vida daqueles que foram justificados e adotados para torná-los santos e transformá- los na semelhança de Cristo. A obra de Deus no crente inclui tanto o querer como o realizar o que Ele exige. Obediência ativa aos mandamentos do Senhor é essencial. A santificação exige mortificar tudo que é pecaminoso na vida humana. Também exige que sejam desenvolvidos novos hábitos e padrões de pensamento e viver piedosos.

10. A obtenção da perfeição cristã
Durante esta vida, nenhum crente está completamente livre do pecado, e a santificação progride em níveis variáveis. A obra de Deus em disciplinar seus filhos também contribui à santificação deles. A obra de santificação será completada pelo poder e a graça de Deus. O espírito é plenamente santificado por ocasião da morte, unindo-se “aos espíritos dos justos aperfeiçoados”. Na ressurreição, o corpo do crente compartilhará dessa perfeição e será tornado semelhante ao corpo glorioso de Cristo. Por fim, cada crente portará a imagem do homem “celestial”.

Nossa sociedade é injusta

Nossa sociedade é injusta e parte desta injustiça decorre do nosso silêncio e da nossa conivência com o erro e com a própria falta de injustiça. Ser cristão é também trazer a justiça do Reino para todas as esferas da existência humana, de modo que todas as pessoas sejam tratadas dignamente, como Deus as trata. Os cristãos não devem ser grosseiros, mas também não omissos, pois quando reclamamos pelo que é justo e direito, abrimos portas para a defesa de outros também. Portanto, conheça e faça valer os seus direitos e os do seu semelhante, pois isso também é demonstrar amor e agir de maneira integralmente CRISTÃ!

Fundamentação do cristão na palavra.


A religião pura e sem máculaIntrodução1 

Cada geração de cristãos deve ter o firme compromisso de fundamentar sua fé somente na Palavra de Deus – “a igreja reformada deve estar sempre se reformando”, isto é,sempre voltando às Escrituras Sagradas como única revelação que a igreja deve seguir. Esse princípio ensina que a igreja não deve ficar inventando novidades, mas deve pregar e ensinar tão somente o puro e claro evangelho de Cristo conforme revelado nas Escrituras. No dia 31 de outubro, celebramos a data em que em 1517 se diz que Martinho Lutero afixou na porta da Igreja do Castelo, em Wittenberg, suas famosas Noventa e Cinco Teses, começando a Reforma protestante. Esse movimento de retorno às Escrituras, entretanto, não se restringiu apenas à Alemanha. E seu impacto também não se restringiu a questões teológicas dissociadas da realidade, mas buscou de igual forma responder aos grandes problemas sociais da época.

I. Martinho Lutero

Martinho Lutero (1483-1546) esforçou-se para diminuir o abismo entre a fé salvadora e a ação social.2  O desejo de agir em prol dos necessitados apareceu resumidamente nas Noventa e Cinco Teses, nas quais Lutero argumentou que é melhor dar aos pobres e emprestar aos necessitados que comprar indulgências: “Deve se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências” (tese 43). Essa medida serviu para providenciar uma verba para o sustento dos pobres e ao mesmo tempo estimular o envolvimento da população na assistência social em Wittenberg.

Para Lutero, o cristão justificado torna-se livre para poder, por meio da fé, levar uma vida de serviço decorrente do amor a Deus. A ação social é decorrente de uma mudança baseada na liberdade da justificação pela graça por meio da fé. O resultado será um novo compromisso moral com a sociedade, à medida que os necessitados sejam amparados.

Sobre o papel dos pastores na transformação social, em sua Prédica para Que se Mandem os Filhos à Escola, ele escreveu:

[O pregador atua] em favor das almas, livrando-as do pecado, da morte e do diabo. No entanto, ele também realiza tão somente grandes e imponentes obras em favor do mundo: ensina e instrui todas as categorias sociais como se devem conduzir exteriormente em seus cargos e posições, para agirem com justiça perante Deus. Pode consolar os tristes, aconselhar, intermediar em casos de conflito, reconciliar consciências confusas, ajudar a manter a paz, a reconciliar, a viver em harmonia e inúmeras obras mais diariamente. Pois um pregador confirma, fortalece e ajuda a preservar a autoridade, toda a paz secular, resiste aos sediciosos, ensina obediência, bons costumes, disciplina e honra; instrui pai, mãe, filhos, empregados, em suma, a cada qual em sua função e estado secular. (...) Para dizer a verdade, a paz temporal (...) é, no fundo, um fruto do ministério da pregação.

Para Lutero, o cristão deve viver de maneira que seu amor por Deus seja espontâneo, não visando a qualquer recompensa material ou espiritual, mas simplesmente com o objetivo de fazer a vontade de Deus, pois a vida cristã consiste “em tudo querer o que Deus quer, buscar a glória de Deus e nada desejar para si, pois é no cuidado pelos mais fracos e desamparados que Deus é glorificado”.

II. Filipe Melâncton

Um dos mais importantes amigos e colaboradores de Lutero foi Filipe Melâncton (1497-1560).3  Esse erudito lançou os fundamentos da escola elementar popular. O que guiava sua perspectiva do ensino era que “alguns não ensinam absolutamente nada das Sagradas Escrituras; alguns não ensinam às crianças nada além das Sagradas Escrituras; ambos os quais não se deve tolerar”.

Em 1528, seus Artigos de Visitação para as escolas foram promulgados como lei na Saxônia, e sua obra como educador público passou a ser uma dimensão adicional em sua vida. Ele propôs a organização dos estudantes em três classes, divididas em faixas etárias. Na primeira divisão, as crianças estudavam o alfabeto, a oração do Pai-Nosso e o Credo dos Apóstolos. Na segunda divisão, eram estudados pelos adolescentes o Decálogo, o Credo e o Pai- Nosso. Os salmos mais fáceis – 112, 34, 128, 125, 133 – deveriam ser decorados, assim como deveriam ser estudados o evangelho de Mateus, as epístolas de Paulo a Timóteo, a primeira epístola de João e os Provérbios de Salomão. Tudo isto lado a lado com o estudo de física, lógica, gramática, moral e história. No último nível, o equivalente à faculdade, os estudantes deveriam se dedicar ao latim, gramática, dialética, retórica, filosofia, matemática, física e ética. Aqueles que estavam sendo preparados para ensinar na igreja, além destas matérias deveriam aprender o grego e o hebraico, pois em seu entendimento, este conhecimento deveria servir ao estudo e pregação de um evangelho puro.

Melanchthon entendia que Cristo tinha colocado toda a cultura sob seu controle, acreditando que este entendimento impediria os cristãos de viverem vidas grosseiras, enquanto, ao mesmo tempo, os impedia de atribuir mais importância à cultura humana do que à fé cristã. O estudo das letras estava sempre subordinado ao estudo das Escrituras Sagradas, mas ele disse: “Aplico-me a uma coisa, a defesa das letras. Convém que com o nosso exemplo se inflame a mocidade de admiração pelas letras, e que as ame por amor delas, e não pelo proveito que delas possa tirar. A ruína das letras traz consigo a desolação de tudo o que é bom: a religião, os costumes, coisas divinas e coisas humanas. Quanto melhor é um homem, tanto maior é o ardor que tem por salvar as letras; porquanto sabe que das pestes a mais perniciosa é a ignorância. Uma escuridão terrível cairá em nossa sociedade, se o estudo das ciências for negligenciado”. Este ensino abrangente tinha por objetivo tornar os cristãos ativos no mundo, dissipando as trevas de uma fé corrompida e supersticiosa e da ignorância.

Melanchthon também foi considerado o fundador do ensino patrocinado e sustentado pelo Estado. Pelo menos cinquenta e seis cidades procuraram sua ajuda na reforma de suas escolas. Ele ajudou a reformar oito universidades e a fundar outras quatro. Escreveu numerosos livros didáticos para uso nas escolas e, mais tarde, foi chamado o “instrutor da Alemanha” (Preceptor Germaniae). 

III. João Calvino


O francês João Calvino (1509-1564) foi o reformador da Igreja de Genebra, na Suíça, e a ação social também estava entre as suas principais preocupações.4 Ele sustentava que em Cristo Jesus não haveria mais escravos nem livres, pois o Senhor aboliu todas as divisões de classes. Isso significa que o cristão vive a fé autêntica quando encontra seus irmãos numa fraternidade que exclui a discriminação social. Calvino jamais estabeleceu uma conexão entre riqueza ou pobreza de um lado e o favor ou desfavor de Deus de outro. Antes, ele entendeu a riqueza e a pobreza como expressões do favor ou do julgamento de Deus sobre toda a comunidade, que então deveria redistribuir livremente os seus recursos com vistas ao bem comum: “Por que é então que Deus permite a existência da pobreza aqui embaixo, a não ser porque ele deseja dar-nos ocasião para praticarmos o bem?”

De acordo com André Biéler, Calvino ensinava que “somos todos ricos em relação a alguém. O rico tem uma missão econômica de providenciar ao mais pobre parte de sua riqueza, de tal maneira que o pobre deixa de ser pobre e ele mesmo deixe de ser rico”. Esta igualdade pregada pelo reformador tem como objetivo levar os membros do corpo de Cristo à restauração social do mundo, uma vez que, pela fé, o crente em Cristo sendo restaurado à imagem de Deus reconstitui suas relações com seu próximo. Calvino ensinou que Cristo estabelece entre os membros de seu corpo uma comunhão espiritual tão intensa que esta faz com que os cristãos supram as necessidades uns dos outros. Conforme Calvino: “A vontade de Deus é que haja tal analogia e igualdade entre nós. Cada um socorra os indigentes na medida de suas possibilidades, a fim de que alguns não sofram necessidades enquanto outros têm em supérflua abundância”.

Calvino considerava os negócios como uma forma legítima de servir a Deus e de trabalhar para a sua glória. Ele via a circulação de dinheiro e os bens e serviços como uma forma concreta da comunhão dos santos, e defendia que aqueles que se envolviam em negócios deveriam ter como objetivo ajudar os pobres e os ricos. Ele pensava que seria bom restaurar o ano do jubileu – uma redistribuição voluntária periódica da riqueza, de modo que a brecha social nunca se tornasse permanente. Em um sermão, ele disse: “Deus mistura os ricos e os pobres para que eles possam encontrar-se e ter comunhão uns com os outros, de modo que os pobres recebam e os ricos repartam.” 

Biéler cita “um excelente texto do reformador,” que resume o pensamento social de Calvino:

É necessário começar por saber qual a atitude que o Senhor deseja que tenhamos diante dos bens materiais: quais os meios lícitos de ganhá-los e qual o seu uso adequado e legítimo; 

Em primeiro lugar, não devemos buscar os bens terrenos por cobiça. Se vivermos na pobreza, devemos suportá-la pacientemente; se tivermos riquezas, não devemos nos prender a elas nem confiar nelas, devendo estar dispostos a renunciá-las se isso convier a Deus. Tanto o possuir como o não possuir devem ser indiferentes e sem maior valor, considerando a bênção de Deus como maior do que todas as coisas, buscando o reino espiritual de Jesus Cristo sem nos envolvermos em ambições iníquas; 

Em segundo lugar, trabalhemos honestamente para ganhar a vida. Recebamos nossos lucros como vindos das mãos de Deus. Não usemos de má fé para nos apossarmos dos bens dos outros, mas sirvamos ao próximo com consciência limpa. Que o fruto de nosso trabalho seja o salário justo. Ao vender e ao comprar não usemos de fraude, astúcia ou mentira. Apliquemos ao nosso trabalho a mesma honestidade e lealdade que esperamos dos outros; 

Finalmente, quem nada possui não deixe de render graças a Deus e de comer seu pão com alegria. Quem muito possui não use de glutonaria, de luxo, de orgulho e de vaidade, gastando dinheiro com coisas supérfluas; antes, seja em tudo moderado, e empregue seus bens em ajudar e socorrer o próximo, reconhecendo-se como quem recebeu seus bens de Deus e que deles há de um dia prestar contas. Devemos nos lembrar que o que tem em abundância use apenas o necessário para que o que nada tem não fique privado; 

Em resumo, assim como Jesus Cristo deu-se por nós, também comuniquemos ao próximo, com amor, as graças que recebemos, ajudando-o na sua pobreza e socorrendo-o na sua miséria. Isto é o que nos cabe fazer.5  

Na prática, os pastores em Genebra intercediam diante do Conselho da cidade em favor dos pobres e dos operários. O próprio Calvino intercedeu várias vezes por aumentos de salário para os trabalhadores. Os pastores genebrinos pregavam contra a especulação financeira e fiscalizavam parcialmente os preços contra altas abusivas. Sob a influência dos pastores, o Conselho limitou a jornada de trabalho dos operários. A ociosidade foi proibida por leis: os estrangeiros que não tivessem meios de conseguir trabalho deveriam deixar Genebra dentro de três dias após a sua chegada. E os desocupados da cidade deveriam aprender um ofício e trabalhar, sob a ameaça de serem presos, se assim não fizessem. O Conselho instituiu cursos profissionalizantes para os vadios e os jovens, para que eles pudessem entrar no mercado de trabalho.6 

Conclusão

Nosso atual cenário político é marcado por gastos públicos incontroláveis, aparelhamento das estatais e órgãos públicos onde o Estado é colocado a serviço de um partido, corrupção desenfreada, sistemática desmoralização dos poderes e instituições, ações sociais inefetivas, além dos inquietantes sinais de instabilidade política na América Latina. Diante disto, precisamos perguntar em que sentido a teologia social dos reformadores pode nos ajudar hoje, aqui e agora, no Brasil. Como decorrência de tal herança, a igreja evangélica (especialmente os reformados) deveria se envolver em todos estes aspectos da sociedade, “usando os meios apropriados, lícitos e legais para protestar, advertir e resistir à injustiça social, usando a pregação da Palavra para chamar ao arrependimento os governantes corruptos, os ricos opressores e os pobres preguiçosos, e exercitando obras de misericórdia e assistência social através de uma diaconia treinada e motivada. Todo esse envolvimento social deve acontecer sem perder de vista que a missão primordial da Igreja é promover a reforma (parcial e provisória) da sociedade através da proclamação do evangelho de Jesus Cristo, aguardando os novos céus e a nova terra onde habita a plena justiça de Deus.”7 

A assistência social tem um lugar importante na vida cristã. É um dever do cristão se engajar nas esferas políticas para influenciar o Estado, para lutar e estabelecer instituições e estruturas mais justas. Mesmo assim, não podemos colocar nossa confiança em sistemas econômicos e ideológicos. É necessário enfatizar que qualquer sistema de governo somente é tão bom quanto o são os homens e mulheres que governam. Por isso, e esta é outra lição que poderemos aprender com os reformadores, não se deve centralizar o poder nas mãos de algumas poucas pessoas, mas dividi-lo entre poderes claramente separados e equilibrados, e entre o maior número possível de pessoas. E os governantes devem sempre prestar contas ao povo, que tem o direito e o dever de afastar os injustos e corruptos do poder.8 

Que Deus nos dê coragem de viver e morrer pela e na fé evangélica. Que oremos como Martinho Lutero: “Eterno Deus e Pai do Nosso Senhor Jesus Cristo, dá-nos o teu Espírito Santo que escreve a Palavra pregada em nossos corações. Que nós recebamos e creiamos no teu Espírito para sermos regozijados e confortados por Ele na eternidade. Glorifica a tua palavra em nossos corações e faz com que ela seja tão brilhante e candente que nós achemos prazer nela, e através do teu Espírito Santo, pensar o que é certo, e pelo teu poder cumprir a tua Palavra por amor de Jesus Cristo, teu Filho, Nosso Senhor. Amém!”

o que quer dizer-O amor cobre multidão de pecados.


– Um estudo exegético de 1 Pedro 4:8

O que será que Pedro quis dizer quando ele escreveu “Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados.”? (1 Pedro 4:8) É possível uma pessoa fazer algo de um amor tão profundo e forte que consegue o perdão de algum pecado seu, ou de outra pessoa? Deus leva em consideração nossos atos e até sacrifícios em decidir perdoar ou não algum pecado?

Primeiramente, no própio texto, não encontramos a palavra “perdão” ou “perdoar”. Embora as traduções da NTLH e NVI tragam a palavra “perdoa”, a palavra no original é o verbo grego “kalupto”, que é traduzida como “cobrir (Mt 8:24; Lc 23:30; Tiago 5:20), ocultar (2 Cor 4:3) ou esconder (Mt 10:26; Lc 8:16)”. Em nenhuma das outras passagens em que ocorre no Novo Testamento a palavra significa “perdoar”. Esta palavra é melhor traduzida nas versões da Revista e Atualizada e a Corrigida por “cobre”.

Mas, como é então que o amor “cobre” pecados se não os perdoa? Vemos isso no contexto próximo. A frase completa de Pedro é “Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados.” Este amor “intenso” (ou como traduz a NVI “sincero”) é um amor determinado. Não é um amor casual, que nasce de emoção ou algum vínculo passageiro. É o amor que vem daqueles que já descobriram o quanto Cristo sofreu “na carne” (4:1) por eles.

Pedro começa esta parte da carta relembrando seus leitores “Uma vez que Cristo sofreu corporalmente, armem-se também do mesmo pensamento, pois aquele que sofreu em seu corpo rompeu com o pecado, para que, no tempo que lhe resta, não viva mais para satisfazer os maus desejos humanos, mas sim para fazer a vontade de Deus.” (1 Pedro 4:1-2) Parte desta vontade de Deus é o amor mútuo, uns para com os outros, um amor que é tão forte que é capaz de não só perdoar, mas, de procurar poupar quem pecou contra nós.

O Contexto Maior
Para entender esta passagem, é fundamental partirmos do princípio de que o perdão de pecados vem somente em Cristo e por meio do sacrifício redentor dEle. 
- “Jesus, porém, tendo oferecido, para sempre, um único sacrifício pelos pecados, assentou-se à destra de Deus.” Hebreus 10:12
- “E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos.” Atos 4:12

Nenhum ato nosso, por maior ou mais doloroso que seja, pode efetuar o perdão de um único pecado. Somente o sacrifício de Jesus foi capaz de fazer isso, e somente o sacrifício dEle na cruz é aceitável a Deus para perdão de pecados. Eu não consigo perdoar pecados, nem meus nem de outros no sentido absoluto. Eu posso perdoar o que alguém fez para comigo. Mas, não consigo para ele perdão diante de Deus pelo que ele fez. Isso só Deus pode fazer.

Como vários comentaristas têm observado, esta frase de Pedro lembra muito Provérbios 10:12 “O ódio excita contendas, mas o amor cobre todas as transgressões.” Há um paralelismo evidente aqui. Se o ódio é contrastado com o amor, o “cobrir” das transgressões de outros é contrastado com o “excitar contendas”. O que é excitar contendas, senão semear e acirrar diferenças, instigar conflito, e assim colocar uma pessoa contra outra. Uma das maneiras mais comuns de fazer isso é lançar acusações, (tendo base na verdade ou não) contra outras pessoas. Em contraste com quem faz isso, o amor procura “cobrir”, ou seja, proteger.

Alguns comentaristas
Lenski, no seu comentário sobre esta passagem, refletiu "Amor esconde (os pecados dos outros) da sua própria vista, mas, não da visão de Deus. O ódio faz o contrário, ele bisbilhota para descobrir algum pecado ou semelhança de pecado num irmão, para daí espalhar e até exagerar, festejando a descoberta." Ou seja, aquele que compreendeu o quanto Cristo o amou, ao ponto de sacrificar seu próprio corpo por ele, vai amar seus próximos com um amor sincero e determinado. Ele vai deixar de lado os danos que sofre, vai olhar além das falhas do seu próximo e vai, no que competa a ele, “cobrir” os pecados dos outros.


 "O amor 'intenso' implica um propósito que é buscado de forma determinada. 'Amor intenso' fala não tanto da intensidade emocional, mas é, neste contexto, um amor que prossegue apesar de dificuldades, porque é um amor que 'cobre uma multidão de pecados'." (Jobes, K. H. (2005). Comentário de 1 Pedro. Baker Exegetical Commentary on the New Testament (p. 278). Grand Rapids, MI: Baker Academic.)

- “A queda para baixo é quebrada quando alguém em amor indulgente quebra o ciclo de agir, movido por sentimentos magoados e propagando o erro...” (Jobes, K. H. (2005). Comentário de 1 Pedro)

- N.J.D. White escreveu que uma pessoa, sob o controle do amor de Deus, “quando sofre um prejuízo privado e pessoal, age como se nada tivesse acontecido. Desta forma, pelo simples ato de ignorar o ato cruel ou palavra de injúria, ... ele leva a maldade ao fim; ela morre e não deixa semente.” (do comentário de 1 Pedro de K.H. Jobes).

- “O amor aguenta todas as coisas, é paciente em tudo. Nao há nada rude, nem arrogante no amor. O amor não sabe nada de divisões, o amor não lidera nenhuma rebelião, o amor faz tudo em harmonia. No amor todos os eleitos de Deus foram aperfeiçoados; sem amor nada agrada a Deus. Em amor o Mestre nos recebeu.” ( Clemente de Roma, Carta aos Coríntios 49)

O que a passagem não significa
Evidentemente esta passagem não está ensinando que devemos “esconder” pecados ou crimes dos outros no sentido de defender atos ilícitos ou protejer criminosos. O foco desta passagem é claramente naquilo que tange à vida pessoal. Eu devo amar o meu próximo ao ponto de “cobrir”, ou seja, esquecer e evitar espalhar aquilo que ele fez contra mim. Se ele cometeu algum ato ilícito ou pecou contra outro, Pedro não está encorajando a “lei do silêncio”, que tantas vezes contribui para a propagação da injustiça. O ponto é estritamente na relação pessoal e no que eu decidir fazer relativo aos danos que eu pessoalmente venha a sofrer.

Este texto não está dizendo que devemos então fazer vista grossa de pecado. O próprio Senhor nos ensinou das consequências de pecado não arrependido (Lucas 13:5 “se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis.”) e da necessidade de confrontar o pecado e o pecador e chamá-lo ao arrependimento (Mateus 18:15-17). Este processo envolve o reconhecer e confrontar o pecado e o pecador, e signifca que este pecado, se não for reconhecido e arrependido pelo pecador, terá que ser compartilhado com outros – não pode ser “coberto”, tem que ser “descoberto”. Mas, nunca com o intúito de espalhar a notícia, e sim, de (com a ajuda de outros irmãos) persuadir o pecador a se arrepender. Este é sempre o objetivo.

Conclusão
Jobes conclui seu comentário sobre esta passagem desta maneira: “Pedro está preocupado com comportamento que poderia destruir a comunidade Cristã; tais comportamentos precisam ser eliminados se a igreja irá sobreviver... Em 3:9 Pedro lembra ‘Não retribuam mal com mal, nem insulto com insulto; ao contrário, bendigam; pois para isso vocês foram chamados, para receberem bênção por herança.’ Pela definição de Pedro, ‘amor’ não é apenas um sentimento caloroso, mas significa tratar outros em comunidade Cristã de modo a promover a unidade e evitar ou superar comportamentos que destroem relacionamentos.

Por que esta era uma virtude tão importante? Em nossos tempos nós vemos igrejas divididas e congregações alienadas sobre questões triviais. Embora seja uma situação dolorosa, tal discórdia não destrói a presença Cristã em nossa sociedade porque há tantas congregações Cristãs em praticamente cada cidade. No entanto, na época em que Pedro escreveu, a igreja Cristã era pequena, com talvez um punhado de membros em cidades distantes umas das outras pela Ásia Menor.

Se relacionamentos naquela comunidade fossem destruídos, os crentes alienados não tinham para onde ir, e o testemunho do Evangelho naquele lugar poderia ser apagado. Na medida em que a pressão do estado aumentou contra a igreja Cristã, a ameaça de destuição por fora cresceu de forma significativa sobre as igrejas nascentes. Quão trágico se eles fossem destuídos por dentro pela sua própria incapacidade de viver em harmonia com outros crentes! Tamanho amor dentro da igreja foi o principal recurso para a preservação da comunidade Cristã como sociedade alternativa.” (Jobes, K. H. (2005). Comentário de 1 Pedro)

Refletindo sobre a situação de tantas divisões e rachas entre igrejas e dentro de denominações, é de se perguntar se não estamos precisando desta exortação novamente nos dias de hoje. Hoje, há templos praticamente “em cada esquina”. Um seguidor de Jesus que estiver em conflito numa congregação pode facilmente partir para outra, sem que a igreja de onde ele partiu morra, (e sem que ele tenha que se incomodar em lidar com um conflito entre ele e outro irmão.)


 
Será que temos avançando? Ou, será que a facilidade com qual podemos trocar de congregação tem nos levado a evitar de perdoar, de buscar conciliação, e de “cobrir” o pecado do nosso próximo? Será que não estamos precisando hoje, mas, do que nunca ouvir de novo esta preciosa palavra do Senhor?

“Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados.”? (1 Pedro 4:8)

Aplicação
Não podemos “pagar” pelos nossos pecados amando outros, ainda que de forma sacrificial. Nem tampouco podemos fazer isso pelos pecados dos outros. Mas, podemos fazer algo que, para seres humanos, talvez seja ainda mais admirável – cobrir o mal que outro fez conosco. Ao invés de tornar notório, de espalhar, ou de perseguir a “justiça” por um mal feito contra nós, nós podemos decidir fazer parte da “justiça” de Deus – de encobrir o pecado, a falha, o fracasso do outro.

Certa vez após a sua ressurreição, Jesus se encontrou com o próprio Pedro numa praia, sentado com os outros discípulos ao redor de uma fogueira (João 21:15-17). Jesus escolheu não lembrar a Pedro (e aos outros) o quanto Pedro falhou na sua promessa de ir com Jesus até a morte, e, pior ainda, que ele negou o Mestre veementemente em público. Jesus teria todo direito de levantar aqueles pecados, de repreender a Pedro, de indagá-lo se ele estava mesmo arrependido. Mas, tudo isso Jesus deixou para trás. Ele cobriu.

Ao invés disso, Jesus apenas perguntou a Pedro se ele O amava. Jesus sabia o quanto Pedro estava envergonhado pelo seu pecado. E querendo “cobrir” isso, Jesus sequer mencionou; apenas deu a esse querido discípulo a oportunidade que ele tanto precisava de se redimir, e em público, de talvez o maior e mais doloroso pecado da sua vida – pecado justamente contra Ele, Jesus. Depois de acolher a declaração de Pedro, o pecador, Jesus confiou a ele a grande missão da sua vida: “Pastoreia as minhas ovelhas.”

Imagine o quanto isso significou para Pedro. Será que ele estava lembrado daquilo que Jesus fez com ele, Pedro pecador, quando ele escreveu “tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados”?

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